“As mulheres tornaram-se especialistas em reconstruir a vida”
Escritora Maria Dueñas
“Em 2009, quando se publicou O Tempo entre Costuras, tudo aconteceu muito depressa: o sucesso de vendas, a publicação na América Latina, a tradução para outras línguas, a primeira das quais, creio, foi o português, a adaptação para televisão. Admito que fiquei um bocadinho assoberbada.”
U “ma máquina de escrever reinventou o meu destino.” Assim começa o romance O Tempo entre Costuras que, em 2009, transformou a professora de Filologia Inglesa da Universidade de Múrcia numa das autoras de maior sucesso de língua espanhola, com traduções em 35 línguas e uma adaptação de igual sucesso à televisão (uma produção da espanhola Antena 3, com participações de atores portugueses como o saudoso Filipe Duarte ou João Lagarto, a que a Netflix conferiria dimensão mundial). Não fosse a circunstância da máquina de escrever ter sido substituída pelo computador, a escritora poderia sem uma hesitação fazer suas as palavras da sua protagonista, Sira, e dizer que as palavras, tratadas em modo literário e já não dissecadas de acordo com as regras da Filologia, a transportaram para outros mundos.
Mais de uma década e vários romances depois (As Filhas do Capitão, Recomeçar e AsVinhas de Templanza, todos publicados em Portugal), Maria Dueñas (nascida em Puertollano, Ciudad Real, em 1964) volta a pegar na mão da sua intrépida Sira e leva-a de volta ao centro dos acontecimentos no pós-2ª Guerra Mundial. Publicado em Espanha em abril deste ano, Sira – assim se intitula esta segunda parte da saga – estará à venda em Portugal em outubro, com edição da Porto Editora. O DN aproveitou a sua vinda à Feira do Livro de Lisboa para falar com a autora e saber, entre outras coisas, que novas aventuras esperam esta rapariga a quem uma máquina de escrever mudou a vida.
A máquina de escrever mudou a vida de Sira, a sua protagonista, mas foi O Tempo entre Costuras,eo seu imenso êxito, que transformou a sua. Como é que tudo aconteceu? Em 2009, quando se publicou O Tempo entre Costuras, tudo aconteceu muito depressa: o sucesso de vendas, a publicação na América Latina, a tradução para outras línguas, a primeira das quais, creio, foi o português, a adaptação para televisão. Admito que fiquei um bocadinho assoberbada e, antes de escrever o segundo romance, senti necessidade de ter algum tempo e distância em relação a tudo isto.Vieram depois outros livros: Recomeçar; As Filhas do Capitão; As Vinhas de Templanza. Mais recentemente, tinha pensado fazer outro livro, mas, um dia, viajei para Marrocos (eu viajo muito, penso sempre que há muitas histórias para contar e é sobretudo em viagem que elas me aparecem) e senti que a Sira ainda tinha histórias para contar. Perguntei-me porque razão estava a ter esta espécie de auto-censura em relação àquelas personagens. E percebi que não havia nenhum motivo razoável para continuar com esta atitude. Se contasse outras histórias de Tânger sem envolver Sira, seria quase uma traição.
O sucesso verdadeiramente mundial de O Tempo entre Costuras apanhou-a de surpresa? Totalmente. Eu era professora universitária, não era escritora, não tinha aspirações a sê-lo e aquele era o meu primeiro romance. Fiz todo o trabalho dos escritores de primeira viagem: Fui à procura de uma editora e, de repente, tudo se tornou uma bola de neve. Com a série de televisão na plataforma da Netflix, adquiriu mesmo proporções que eu nem podia imaginar.
A Sira desta segunda novela é diferente da que conhecemos na primeira? Pelo pouco que li, pareceu-me que sim. Já não é tanto uma jovem ingénua, envolta numa teia de acontecimentos mundiais devastadores, mas uma mulher madura no cenário do pós-IIª Guerra Mundial…
É mais madura e vive num mundo em reconstrução. Entretanto, ela casou com Marcus Logan, o agente dos Serviços Secretos britânicos que conhecera durante a guerra. Mas ambos têm dois planos diferentes para o futuro: ela quer voltar a Marrocos, ele quer ir a Londres. Acabam por não ir para nenhum destes sítios. Por causa do trabalho dele, vão para a Palestina, que estava, nessa época, sob domínio britânico. Ela acompanha-o, como então se esperava de uma boa esposa, mas a Palestina vivia uma época de enorme tensão nesses anos prévios à constituição do Estado de Israel, com
muita violência não só entre judeus e muçulmanos, mas também entre estes e o poder civil e militar britânico. Sira sente-se mal ali porque é duplamente estrangeira. Para além disso, vai engravidar e vai querer muito que a criança nasça num lugar de paz mas não sabemos se será possível…
Esta jovem está sempre metida em sarilhos, ou seja, no lugar em que tudo acontece e sempre muito atenta a tudo…
É verdade. É um bocadinho irresistível para quem escreve porque é uma época muito interessante, com muitas coisas importantes, cheias de consequências, a acontecerem. Da Palestina ela depois irá a Londres (uma Londres ainda destroçada pelos bombardeamentos) para trabalhar nos serviços em espanhol da BBC. Devo dizer que foi muito interessante para mim mergulhar nos arquivos desta estação e perceber que os seus primeiros serviços em línguas estrangeiras foram em espanhol e português.
A investigação histórica é muito importante para si? De facto, tudo aquilo parece sempre muito verosímil e realista.
Para construir uma ficção, preciso de ter uma base sólida de investigação. Talvez seja porque estou muito habituada aos métodos de trabalho da Universidade. E a verdade é que tenho muito prazer em investigar, sobretudo uma época em que já há muito material gráfico disponível, o que nos permite ter uma ideia muito clara de como viviam essas pessoas.
Portugal desempenha um papel importante em O Tempo entre Costuras...
Foi fascinante para mim perceber a importância do papel que Portugal desempenhou durante a guerra, sendo neutral. Andar pelo Estoril a perceber quais eram os hotéis dos britânicos e dos alemães foi uma experiência muito emocionante. Sira é uma mulher forte, rodeada de outras que também o são (a mãe, as amigas de várias nacionalidades). Tem essa preocupação de passar uma mensagem sobre o papel das mulheres na sociedade?
Nessa época, sobretudo nos nossos dois países, as mulheres podiam ser fortes mas apenas em casa. Pelas circunstâncias históricas que conhecemos, elas não podiam estar na primeira linha, mas, na verdade, eram elas que suportavam o peso da família, às vezes trabalhando para fora para arranjar um pouco mais de dinheiro, sobretudo através da costura, que é a origem da fortuna de Sira. Isto era determinante numa época em que os homens estavam na guerra, alguns acabavam por morrer ou voltavam gravemente feridos. Outros não as tratavam bem e eram negligentes com as suas próprias famílias. A Sira, que já se reconstruira depois de uma paixão tão grande como funesta que a arruinou e lhe destruiu a vida como ela a vivera até aí, vai voltar a ter de se reconstruir. Em cada uma das quedas que dá, encontra uma aprendizagem, com mais conhecimento do mundo e de si mesma. É uma mulher mais completa, mais segura de si.
Esse tema da reconstrução pessoal após um duro golpe é um tema frequente nos seus livros. Estou-me a lembrar de Recomeçar, passado na nossa época, em que também encontramos um processo desses… Sim, fascina-me o tema de mulheres que têm uma vida mais ou menos estável e que, de repente, vivem uma rutura. Não são heroínas intrépidas, com enormes ambições, mas são pessoas como todas nós. No caso de Recomeçar é uma professora apanhada de surpresa pela partida do marido, que lhe anuncia o seu desejo de se divorciar. A partir daí, a vida como ela a conhecera, a sua relação com o mundo e consigo própria, mudará para sempre e de forma drástica. Creio que as mulheres, em várias épocas, se tornaram especialistas em reconstruir a vida. Como viveu a adaptação dos seus livros à televisão?
Participei na supervisão dos guiões, falando muito com os argumentistas, passando-lhes o meu ponto de vista. Eles mandavam-me o seu trabalho, eu revia, dava a minha opinião. Até agora, essa era a minha participação. Mas este ano estreou na Amazon Prime Video a adaptação de As Vinhas de Templanza e também foi muito interessante.Voltei a fazer a revisão dos guiões e fiquei muito contente. E agora estou a trabalhar na adaptação de As Filhas do Capitão também para a Amazon Prime Video, e estou a trabalhar com os guiões, mas também na produção executiva. São novas aventuras.
É algo muito diferente para uma pessoa que até há alguns anos era professora universitária, com os seus alunos e trabalhos académicos. É outro mundo?
É outro mundo mas, na verdade, há pontos que se tocam. Há estratégias, ferramentas, métodos de trabalho que adquiri na universidade e que agora me voltam a ser muito úteis. Falo sobretudo da documentação, da necessidade de estruturar, a disciplina de escrever. Na verdade, nas nossas vidas não há compartimentos estanques.
“Nessa época, sobretudo nos nossos países [Espanha e Portugal], as mulheres podiam ser fortes mas apenas em casa [...] Mas, na verdade, eram elas que suportavam o peso da família, às vezes trabalhando para fora para arranjar um pouco mais de dinheiro, sobretudo através da costura, que é a origem da fortuna de Sira.”