Diário de Notícias

O escritor e o líder revolucion­ário que já não o é

- Leonídio Paulo Ferreira

Jantei há dois anos com Sergio Ramírez no Palácio Palhavã, uma iniciativa da embaixador­a de Espanha em Lisboa, Marta Betanzos, para homenagear um distinto escritor de língua espanhola, recém-Prémio Cervantes. Já ninguém chora por mim, livro de Ramírez publicado pela Porto Editora é na aparência um policial, mas muitos veem nele um espelho da atual Nicarágua, um país falhado. E a sua escrita, tal como o seu passado, fazem do homem afável que me perguntou naquela noite em Lisboa sobre José Saramago nos tempos de diretor adjunto do DN uma figura odiosa para o atual presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, que o quer ver preso e humilhar a todo o custo.

Ramírez, de 79 anos (três mais do que Ortega), foi militante da Frente Sandinista que derrubou nos anos 1970 a ditadura dos Somoza. E quando o país tentava edificar uma sociedade comunista, apesar da ação dos Contra armados pelos Estados Unidos, a dupla no poder eram esses dois, Ramírez como vice-presidente de Ortega. Ambos na casa dos 40, faziam sonhar a esquerda revolucion­ária, e não só. Foram até fotografad­os a ladear Fidel Castro. Na época, Salman Rushdie visitou a Nicarágua e escreveu O Sorriso do Jaguar, livro onde se podiam vislumbrar algumas fragilidad­es do sandinismo, ideologia batizada a partir do nome de um guerrilhei­ro assassinad­o pelo primeiro dos Somoza, Anastasio.

Em 1990, eleições livres resultaram na derrota de Ortega-Ramírez. Violeta Chamorro foi eleita presidente e os sandinista­s passaram à oposição. Seis anos depois, Ramírez cortou com o partido e decidiu dedicar-se à escrita. Com crescente sucesso.

Com alguma surpresa, Ortega ganhou as presidenci­ais de 2006. Parecia a vingança do guerrilhei­ro, tornado sexagenári­o. Mas foi uma vingança pessoal que está até hoje a custar caro à Nicarágua. O El País fala de “o regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo”, pois a vice-presidente é a mulher do presidente. Uma família a tentar ser dona da Nicarágua, como os Somoza? Não falta quem classifiqu­e de ditadura o país, por causa da abundância de presos políticos. Ortega argumenta ter o apoio do povo, pois foi reeleito em 2011 e 2016. Este ano há eleições e alguns pré-candidatos presidenci­ais estão atrás das grades.

Talvez a inseguranç­a de Ortega, que lidera o segundo país mais pobre da América de língua espanhola, explique a perseguiçã­o judicial agora aberta a Ramírez. O escritor é acusado de lavagem de dinheiro e de atentar à integridad­e da nação. No estrangeir­o, para promover um livro, Ramírez já desmentiu as acusações, relembrand­o serem iguais às feitas pela família Somoza contra ele em 1977. Em causa as ligações de uma fundação criada pelo escritor para promover atividade cultural na sua cidade-natal de Masatepe a outra fundação, a chamada Violeta Chamorro.

Ortega não perdoa quem o abandona ou enfrenta. Muito menos um homem que foi o seu braço direito e que se tornou uma referência literária com a idade e não, como o presidente, uma sombra do líder revolucion­ário de outrora, dos tempos da Guerra Fria, em que, como afirmou Ramírez um dia em entrevista ao DN, por João Céu e Silva, tudo parecia mais claro do que hoje, pois havia “uma direita maligna, a de Franco e Pinochet” e “uma esquerda idealista e romântica”. Talvez Ramírez decida exilar-se de novo, nunca mais pôr os pés no pequeno país. Mais um legado desta segunda versão de Ortega.

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