Miguel Romão
Habitação em Lisboa e Porto: uma consequência lógica de decisões públicas
Ahabitação nas nossas grandes cidades, desde logo Lisboa e Porto, tornou-se um tema decisivo nos últimos anos no espaço público. Como se não o fosse antes... Recorde-se apenas que, pelo menos desde os anos 60 do século passado, havia rendas congeladas, degradação continuada de património, incumprimento sucessivo dos deveres legais dos senhorios, fraude provável nas passagem de contratos de arrendamento pelos arrendatários, subarrendamentos não declarados, etc.
O que sucedeu entretanto? A atualização da legislação do arrendamento urbano, que deu mais liberdade aos senhorios e aumentou objetivamente o valor das rendas. O boom do turismo, fortemente promovido, para Lisboa e Porto, acompanhado da criação dessa nova realidade, legal e fática, que é a do alojamento local. A criação de um regime especial para cidadãos de fora da União Europeia garantindo-lhes livre-circulação neste espaço em troca da aquisição de imobiliário em Portugal. Incentivos fiscais à residência e investimento em Portugal para estrangeiros mesmo intracomunitários. O aumento da facilidade e o decair dos preços do que é viajar de e para Lisboa e a instalação de diversas empresas estrangeiras na cidade. E a consciência alargada de que, numa cidade globalmente depauperada no seu imobiliário e com um nível de vida progressivamente mais elevado e de maior qualidade no espaço público, por aqui se comprava um T4 ao preço de um T0 em Madrid ou em Paris, com uma rentabilidade assegurada. Ou se comprava um pequeno quarteirão ao preço de um prédio pela Europa... Oportunidades.
Talvez esse tempo já tenha passado, na sua exuberância. Mas não se pode dizer que isso ocorreu à revelia ou sem a criação das condições adequadas a esse investimento e, sim, também à especulação pura e dura. Criação de condições por parte dos poderes públicos. Parlamento, Governo e autarquias criaram as condições ideais para se obter a situação que hoje os preocupa... E com ganhos, desde logo financeiros, substanciais, para as nossas entidades públicas e para o nosso orçamento coletivo. Todo o escândalo aparente com que hoje se erguem decisores políticos contra a dificuldade que é a de “uma família de classe média” arrendar a “preços que possam pagar” uma habitação em Lisboa é, na verdade, algo de exótico: é, apenas, uma realidade criada por decisões políticas consecutivas e pela natural adesão do capital e das pessoas a essas mesmas decisões. E com os devidos resultados favoráveis nas urnas. Aqui não pode haver inocentes. Todos escolhemos este resultado. Pois se até um vereador em Lisboa do Bloco de Esquerda era investidor “especulativo” em imobiliário no centro da cidade...
Não houvesse vistos gold, não houvesse incentivos à reabilitação urbana, não houvesse incentivos ficais à deslocalização para Portugal de estrangeiros, etc., etc . ... – e tudo seria mais barato em termos de habitação. Mas também mais miserável seguramente na sua realidade material, como o foi durante anos. E isso deve ser também ser dito.
Criou-se o risco de termos assim cidades museu, comoVeneza, que servem apenas para o lazer de turistas que nos visitam? Claro que sim. Mas só se pode dizer, no mínimo, que foi um risco calculado e assumido por diversos Governos e governações autárquicas.
E como agora contrabalançar isso com cidades que existem como tal, onde vivem e trabalham pessoas?
Claro que se pode sempre construir e subarrendar “habitação social”, a “custos controlados”, chame-se o que se lhes chamar agora, de acordo com o mais politicamente correto, como sucede neste momento, com custos diversos pagos por todos os contribuintes. Isso pode trazer mais alguns habitantes para Lisboa e adicionar conteúdo a esta cidade. Mas tem seguramente os seus limites, nem que sejam os físicos e financeiros. E porque não também qualificar e melhorar decisivamente o que é viver à volta de Lisboa e Porto, na habitação, no espaço público, na segurança e nos serviços disponíveis, e assegurar transportes com mais qualidade e eficiência entre espaços urbanos?
Quando autarquias geograficamente consecutivas trabalham apenas em competição e na lógica do seu pequeno território e do seu pequeno eleitorado e os governos fazem de conta de que não sabem, pode também dar este resultado. Estamos preocupados com a realidade demográfica do “centro histórico” de Lisboa? Mas preocupemo-nos também com o Barreiro, com Almada, com a Amadora, com o Seixal, com Odivelas, com Loures. Aí há muito a fazer, em termos de habitação e de espaço público, a bem de muitas pessoas concretas.