Como os EUA e jihadistas mudaram em duas décadas
Depois de excessos e erros, a superpotência desmilitariza combate ao terrorismo. Al-Qaeda foi mimetizada e táticas adaptadas, com grupos a agir por procuração.
Naquela terça-feira, como era costume, o senador Joe Biden estava no comboio a caminho de Washington. Durante o trajeto dois aviões embateram contra as Torres Gémeas, em Nova Iorque. Uma vez chegado à capital, viu o fumo por trás do Capitólio resultante do embate do terceiro avião no edifício do Pentágono. Quando chegou ao Capitólio, conta no livro Promises to Keep, tentou entrar, mas a polícia não deixou. O senador queria transmitir uma imagem de normalidade quando o presidente estava no ar, no avião presidencial, o vice-presidente Dick Cheney e os líderes do Congresso estavam abrigados, e nas ruas os boatos já davam
George W. Bush morto e diziam que uma bomba radioativa tinha explodido. O democrata acabou por fazê-lo quando, minutos depois, foi interpelado pela reportagem da ABC News: instou o presidente a regressar o quanto antes a Washington, apelou para a calma dos norte-americanos e disse logo que os responsáveis iriam ser apanhados. “O terrorismo vence quando, de facto, afeta as nossas liberdades civis ou encerra as nossas instituições. Temos de demonstrar que nenhuma destas coisas aconteceu.” Minutos depois, conta a CNN, Bush telefonou a Joe Biden para agradecer o discurso de unidade e de serenidade.
Se então como agora Joe Biden
Henry Kissinger disse que “o Afeganistão não chegava” e que, tal como os Estados Unidos foram humilhados, era “necessários humilhá-los”, esquecendo-se o diplomata de estabelecer uma ligação entre o ditador iraquiano e a Al-Qaeda. A “reação extrema” dos EUA no exterior foi complementada pela dimensão policial no combate ao terrorismo, a criação de um departamento de segurança interna, colaboração entre CIA e FBI e medidas de segurança no transporte aéreo, nota Bruno Cardoso Reis.
mostrou não recuar perante a adversidade, o presidente defendeu há dias a saída do Afeganistão com um balanço crítico. “Ao virarmos a página da política externa que tem guiado a nossa nação nas últimas duas décadas, temos de aprender com os nossos erros.”
Um dos erros para o qual quase todos apontam foi a invasão do Iraque, em 2003. Como o livro de Bob Woodward Plan of Attack pormenoriza, desde muito cedo que a administração Bush quis acabar o trabalho do pai Bush e acabar com Saddam Hussein. Muitos bem pensantes não se opuseram. Henry Kissinger, por exemplo, disse que “o Afeganistão não chegava” e que, tal como os Estados Unidos foram humilhados, era “necessário humilhá-los”, esquecendo-se o diplomata de estabelecer uma ligação entre o ditador iraquiano e o terrorismo da Al-Qaeda.
Terão os Estados Unidos aprendido com os erros, perguntam jornalistas e peritos ao espelho? “Com a saída calamitosa do Afeganistão e as prioridades americanas pouco claras no futuro, não parece que Washington tenha aprendido com os erros das duas últimas décadas. Em vez disso, o poder e a fraqueza militares dos EUA na execução de uma doutrina estratégica de política externa parecem ser constantes. Finalmente, o perigo dos grupos extremistas permanece, e embora a liderança desses grupos tenha mudado, a sua doutrina não”, sentencia a colunista da Foreign Policy Mina al-Oraibi.
Fim da lua-de-mel
“O 11 de setembro teve um impacto dramático e trágico no imediato, desde logo pela escala do ataque, pela mortalidade que provocou e pela ideia de que poderia ainda ter sido muito pior, se grande parte das pessoas não tivessem sido retiradas. E teve um efeito imediato, acordar os americanos para uma certa ilusão de pós-guerra fria”, diz Bruno Cardoso Reis, vice-diretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE. “Falava-se muito do dividendo da paz e do fim da História, que a única grande potência era benévola e bem acolhida pelo resto do mundo. E no fundo o modelo ocidental de economia de mercado e democracia liberal era um modelo aceite por todos. Claramente, não era o caso e também não é verdade que se tivesse entrado num período de pacificação generalizada das relações internacionais”, prossegue.
“Aquilo que se passa na década de 90 é o que tendo a chamar-lhe a lua-de-mel do pós-guerra fria, em que não só há esta ideia do multilateralismo e da dimensão de cooperação internacional, etc., mas também uma afirmação ímpar, sem competição, dos Estados Unidos”, comenta a investigadora do IPRI Ana Santos Pinto. “Quando acontece o 11 de Setembro, os EUA são o grande poder internacional sem rival estratégico na altura. Sendo certo que hoje os EUA continuam sem rival do ponto de vista militar, têm rivalidade estratégica, no caso da China, e desafio, no caso da Rússia”, diz.
“Expressão da vulnerabilidade dos Estados Unidos”, comenta a professora da Universidade Nova, o 11 de Setembro “gera uma mudança do ponto de vista interno, na organização, e na política externa, primeiro no Afeganistão, depois no Iraque, e naquela designação de que já nos esquecemos de alguma forma, que é a guerra contra o terror”. Essa expressão, continua, “é contra algo que é um sentimento; uma coisa é a guerra contra o terror, outra a guerra contra o terrorismo, são duas questões diferentes, sendo que a guerra enquanto instrumento tradicional de política, é a guerra contra uma entidade material, e nem o terror nem o terrorismo são entidades materiais”.
Cardoso Reis diz ver “alguma verdade” na declaração de guerra de Bush “ao terrorismo e a uma tática violenta, não era apenas a um grupo ou conjunto de grupos terroristas hostis aos Estados Unidos”. “Há uma reação extrema que resulta do enorme susto e do enorme trauma que os EUA sofreram, há uma demonstração de poder e de força para compensar essa demonstração pública de fraqueza.”
Essa força projetou-se mais tarde em “reações muito mais questionáveis e criticadas na altura, como por exemplo a invasão do Iraque”, embora destaque “a ideia de uma militarização do combate ao terrorismo”, a qual foi corrigida anos depois enquanto se registou um reforço noutras dimensões. “Por exemplo, a dimensão policial do combate ao terrorismo, a criação de um departamento de segurança interna, que não existia nos EUA ao contrário da maior parte dos países europeus, um esforço muito grande para quebrar as barreiras entre segurança interna e segurança externa, entre a CIA e o FBI, que se percebeu que não tinham colaborado de todo no combate à Al-Qaeda. E também as mudanças no transporte aéreo, no escrutínio dos passageiros”, elenca.
“Com o 11 de Setembro passamos a olhar por cima do ombro em áreas geográficas onde isso tradicionalmente não acontecia a não ser por lutas políticas internas, como foi o terrorismo no continente europeu”, diz Santos Pinto. “Os instrumentos de combate ao terrorismo, o contraterrorismo, alteram-se. Entramos pelo desenvolvimento tecnológico na utilização de um conjunto de instrumentos, como os dados biométricos, a vigilância eletrónica, os recursos da inteligência artificial, o controlo de fluxos, etc.”, algo a que a docente da Universidade Nova se mostra preocupada, tendo em conta os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e “a forma como estes se articulam nas democracias liberais”.
O autor do livro Pode Portugal ter uma Estratégia? nota que, “eventualmente com alguns erros e alguns exageros”, a resposta “foi bastante eficaz a eliminar um ataque com a mesma escala”. Por outro lado, “não foi eficaz a eliminar completamente o terrorismo e, no fundo, levou a intervenções militares muito prolongadas e com objetivos muito ambiciosos, de reconstrução dos países e de construção de democracias no Médio Oriente”.
Replicar e adaptar o terror
Ana Santos Pinto e Bruno Cardoso Reis coincidem ao referirem que a rede de Bin Laden foi objeto de replicação, mas que apesar dos objetivos serem os de sempre, muito mudou. “O 11 de Setembro torna visível a relação em rede de células, que é mimetizada por outros grupos à escala global. Isso altera o conceito de terrorismo até à data”, diz a investigadora. “Essa mimetização resulta também de cisões internas da Al-Qaeda e de onde sai o braço do autoproclamado Estado Islâmico, que tem uma ligação geográfica muito específica, mas se olharmos para os continentes asiático e africano há essa mimetização.”
“Houve um esforço de outros grupos para replicar o modelo da Al-Qaeda: ataques coordenados em grande escala, construção de santuários, controlo de território para permitir ganhar outra escala, outra ambição. Pelo menos essa ambição tem falhado, não por acaso, mas devido a intervenções militares contra o Daesh na Síria e no Iraque, e contra grupos jihadistas em parte afiliados na Al-Qaeda, em