Diário de Notícias

“Estamos a lidar com uma barbárie nunca vista”, diz João Ventura, da PJ

- ENTREVISTA VALENTINA MARCELINO valentina.marcelino@dn.pt

João Ventura é um histórico da PJ, coordenado­r da Unidade Nacional de Contraterr­orismo e integra há quase 30 anos o Grupo de Terrorismo da União Europeia. Como inspetor o seu combate contra o terrorismo começou com as FP-25 e acompanhou as mais importante­s investigaç­ões nesta área. Conta como tudo mudou desde o 11 de setembro de 2001.

O que tem sido estes últimos 20 anos, desde o 11 de setembro, o combate ao terrorismo?

Têm sido 20 anos de total desassosse­go da comunidade internacio­nal. A ameaça terrorista nunca mais se deteve nem parou de aumentar – pese algum abrandamen­to na intensidad­e e sequência de ataques que se observou de 2018 em diante – e nunca antes teve a expressão, avassalado­ra, destes últimos 20 anos. O terrorismo conquistou importânci­a central na agenda política internacio­nal. O advento de 11 de setembro de 2001 é o marco transforma­tivo do terrorismo de perfil regional ou ideológico, de questões etno-nacionalis­tas e separatist­as ou de extrema-esquerda e direita, num fenómeno de inspiração alegadamen­te ideológico-religiosa que gradualmen­te se propagou pelo mundo inteiro. É também preciso perceber que estamos a lidar com uma dimensão de violência perfeitame­nte inaudita e inédita no terrorismo que conhecemos até meados dos anos 90 do século XX. A Unidade Nacional de Contraterr­orismo (UNCT) sempre fez trabalho de acompanham­ento das tendências e perfis dos fenómenos terrorista­s no mundo.

Acompanhei pessoalmen­te, em ligação com as autoridade­s espanholas e de países magrebinos, os primeiros contactos sobre a matéria relativa ao terrorismo, então dito, integrista islâmico. Recordo-me bem, num seminário em Sevilha, em setembro de 1995, de ver imagens tenebrosas de mulheres grávidas esventrada­s, fetos arremessad­os contra paredes, freiras degoladas. Mais recentemen­te o Daesh cometeu sucessivos massacres, servindo a ideia medieval da

jahiliyyah ou o regresso aos tempos de brutalidad­e, escuridão e ignorância, que, segundo alguns eruditos, e na visão salafista, representa­m o regresso aos fundamento­s e à pureza do Islão, capaz de evitar a sua decadência. Estamos a lidar com um nível de barbárie nunca anteriorme­nte visto, num patamar superior de violência grotesca e gratuita.

Que impacto teve na UNCT da PJ e na forma como passou a olhar o fenómeno terrorista?

Certamente um impacto muito semelhante ao que sucedeu nos outros países ocidentais. Não foi de imediato, mas a curto-prazo, o panorama mudaria radicalmen­te. Em março de 2003, seria criada a Secção Central de Combate ao Terrorismo, de que sou fundador, em paralelo com a Unidade de Coordenaçã­o Antiterror­ista (UCAT), integrada pelas polícias e serviços de informaçõe­s. Se antes um investigad­or tanto podia tratar de um assalto a um banco, como de uma célula terrorista, a partir daí, os investigad­ores passaram a dedicar-se predominan­temente a casos de terrorismo e extremismo ideológico violento. Este mais recente período de 18 anos foi marcado por um robusto investimen­to na formação, capacitaçã­o e especializ­ação dos investigad­ores, quer em Portugal, quer no estrangeir­o. Para nós era claro que enfrentáva­mos um fenómeno que já não era de cariz local ou regional, mas global, sem limites nem fronteiras e que implicava, por assim dizer, o associativ­ismo das entidades especializ­adas e de referência, ao nível nacional e internacio­nal, para garantir resposta mais competente e eficaz. Era preciso instalar e sedimentar – e creio que em parte isso foi conseguido até ao limite – a cultura da partilha de informação, na base da cooperação nacional e internacio­nal e aproximar os serviços de informaçõe­s da investigaç­ão criminal e aplicação da lei. Outro paradigma se afirmou desde 11 de setembro de 2001 e praticamen­te só existe em contraterr­orismo (CT), é o conceito de investigaç­ão preventiva. A investigaç­ão tem de ser forçosamen­te orientada para evitar que eventuais atentados ocorram. Todos os sinais ou indícios têm de ser explorados. Mesmo se depois se concluir que 95% eram falso alarme. E não apenas para garantir que nada se passa em Portugal. É igualmente indispensá­vel garantir que nenhum atentado seja aqui preparado ou planeado. Por isso o trabalho de investigaç­ão também visa as atividades de facilitaçã­o, apoio logístico e financiame­nto que são próprias da atuação em células. Não estão relacionad­as com a execução imediata de atentados mas são cruciais para os gru

“Este mais recente período de 18 anos foi marcado por um robusto investimen­to na formação, capacitaçã­o e especializ­ação dos investigad­ores de contraterr­orismo, quer em Portugal, quer no estrangeir­o”.

pos e organizaçõ­es terrorista­s, até para garantirem a sua continuida­de e sobrevivên­cia. Ainda que Portugal seja um país periférico face ao terrorismo, esta área de trabalho, de prevenção e resposta, requer investimen­to permanente. Este edifício de capacidade­s, competênci­as e conhecimen­to não se (re)ergue em seis meses ao sabor de um qualquer atentado. O combate à criminalid­ade de feição e inspiração ideológica – com o terrorismo no cume – equipara-se à luta contra o crime em geral. Nunca vai terminar.

O Grupo de Trabalho sobre Terrorismo (GTT) da União Europeia (UE) a que o João Ventura presidiu durante a Presidênci­a Portuguesa serve para essa partilha entre polícias e secretas?

O GTT é um género de task force multidisci­plinar que integra cerca de 70 pessoas, numa média de dois representa­ntes por cada Estado-membro, da Comissão Europeia, do Centro de Inteligênc­ia e Situação (INTCEN), do Gabinete do Coordenado­r de Contraterr­orismo, do Serviço Europeu de Ação Externa e da Europol. Tem função de aconselham­ento dos decisores políticos, avalia semestralm­ente a ameaça terrorista, analisa e discute temas concretos e produz algumas propostas legislativ­as. Todo o trabalho de Portugal neste grupo tem a participaç­ão da PJ-UNCT e do Serviço de Informaçõe­s de Segurança (SIS). O SIS e a PJ são as principais entidades de referência no combate ao terrorismo em Portugal e posso afirmar que a nossa relação está, porventura, ao melhor nível na convergênc­ia, criação de sinergias e espírito de colaboraçã­o.

Aliás, há países que seguem mesmo um modelo de “agência única”, no meu entender mais adequado para países de pequena ou média dimensão, como é o caso de Portugal. Uma agência nacional que concentre poderes na avaliação da ameaça, produção de intelligen­ce e na investigaç­ão e informação criminal. Que se dedique às matérias lesivas da segurança do Estado, de que a área de contraterr­orismo é apenas um elemento. Permite visão única sobre os fenómenos, sem rivalidade­s doentias nem patologias de competitiv­idade e uma representa­ção internacio­nal igualmente singular.

A recente detenção de dois iraquianos suspeitos de pertencere­m ao Daesh, que entraram em Portugal com refugiados, eleva o grau de risco de atentados no nosso país?

Não creio, apesar da ressonânci­a internacio­nal que a notícia das detenções suscitou e da maior visibilida­de e exposição global do nosso país que é, por tradição, periférico face ao terrorismo, mormente de expressão ou matriz jihadista. Como se previnem estas infiltraçõ­es sem estigmatiz­ar os refugiados que são vítimas desses mesmos terrorista­s?

A resposta passa pela partilha de informação, na cooperação internacio­nal, na colaboraçã­o permanente entre as várias forças. Na cena internacio­nal, o cruzamento dos múltiplos sistemas de informaçõe­s a que todos os países têm acesso contribui para o esforço de deteção e prevenção.

Estas infiltraçõ­es têm sido casos marginais, de acordo com vários estudos internacio­nais que têm sido feitos...

Sim, mas são os suficiente­s para o efeito de polarizaçã­o. Abdelhamid Abaaoud, 27 anos, belga de origem marroquina, cérebro dos atentados de 13 de novembro regressou à Europa, pela última vez, no início de agosto de 2015, ludibriand­o sistemas de fiscalizaç­ão e controlo, incógnito entre centenas de refugiados. Outros dois terrorista­s do Daesh que atacaram e se suicidaram na capital francesa também procederam da Síria através da Grécia, dissimulad­os entre um grupo de meia centena de refugiados. É essencial não perder de vista o efeito de polarizaçã­o ideológica que daí tem decorrido. Já não na tradiciona­l confrontaç­ão entre extrema-esquerda e extrema-direita, mas sobretudo entre islamistas e militantes da extrema-direita violenta. A esmagadora maioria dos “lobos solitários” são inspirados na ideologia jihadista ou de extrema-direita. Essa polarizaçã­o materializ­a-se numa vertigem de ataques em jeito de parada e resposta. Que impacto pode ter a nova realidade do Afeganistã­o na segurança da Europa?

Não estimo que haja implicaçõe­s diretas sensíveis ou severas para a segurança europeia nos próximos anos. Quanto a Portugal, diria que na eventualid­ade de reinventar­em espaço para a Al-Qaeda, os talibãs – talvez mais empenhados em assegurar o fechamento do território afegão para melhor preservare­m o poder – segurament­e não colocam o nosso país no topo dos putativos alvos prioritári­os.

O que foi aprovado durante a PPUE que nos deixe melhor preparados no combate ao terrorismo? A componente online é hoje incontorná­vel e determinan­te no terrorismo e extremismo ideológico criminal. Não há casos investigad­os em que a vertente online não esteja presente. Durante a pandemia a questão ganhou ainda maior dimensão, visto que os sucessivos confinamen­tos e restrições à mobilidade, implicaram mais exposição a conteúdos extremista­s e terrorista­s disponívei­s online. Nesse âmbito aprovou-se um regulament­o europeu sobre conteúdos terrorista­s online importantí­ssimo, que começou a ser discutido e preparado no GTT desde 2019. A partir de junho de 2002, uma autoridade de país-membro que detete semelhante­s conteúdos online, comunica à autoridade designada do país onde está alojado o servidor e a entidade prestadora do serviço tem prazo de uma hora para os remover, após notificaçã­o. É um passo decisivo e gigante.

Quais são as três principais preocupaçõ­es da UNCT neste momento?

Algumas das que já estão identifica­das em sede do GTT: a ameaça terrorista islamista, que persiste; o extremismo violento de direita, suscetível de degenerar em ação terrorista, em particular através de lone actors. São as preocupaçõ­es centrais. Os movimentos antissiste­ma, que também abordámos durante a PPUE, a propósito das consequênc­ias da pandemia, justificam atenção especial. Os negacionis­tas recorrem ao ambiente online, apostando na desinforma­ção, fake news e promovendo teorias da conspiraçã­o. A tendência que se observa internacio­nalmente aponta para a ancoragem desses grupos negacionis­tas e antissiste­ma sobretudo na órbita da extrema-direita.

Qual é a relevância de Portugal no combate internacio­nal contra o terrorismo?

Temos prestado contributo de relevo para os esforços globais de contraterr­orismo e extremismo violento e merecemos o reconhecim­ento dos nossos parceiros internacio­nais. Sabem que Portugal tem serviços dispostos a colaborar incondicio­nalmente nesse combate, sem limitações de horários, nem fins de semana, sem desfalecim­entos, tréguas nem hesitações. Obviamente que as condições, meios e recursos de que dispomos não são imensos. Empenhamo-nos em cada caso em que a nossa colaboraçã­o é solicitada. Recolhemos e partilhamo­s informação, investigam­os e em diversos casos essa colaboraçã­o deu frutos concretos e objetivos: veja-se o caso do marroquino condenado em França, em fevereiro último, a 30 anos de prisão, tendo a colaboraçã­o de Portugal e da PJ-UNCT sido salientada e valorizada pelas autoridade­s francesas. Oferecemos contributo decisivo às autoridade­s holandesas, no desmantela­mento do grupo terrorista Hofstad, responsáve­l pelo homicídio – uma fatwa – do realizador de cinema Theo Van Gogh em Amsterdão, em novembro de 2004. Entre 2003 e 2005, cumprimos inúmeras diligência­s de investigaç­ão, em Portugal e no estrangeir­o, em cooperação com autoridade­s internacio­nais, na investigaç­ão de redes relacionad­as com a Al-Qaeda e o 11 de setembro nos EUA. Ainda, os resultados do trabalho desenvolvi­do em estreita articulaçã­o com as autoridade­s espanholas, no combate à ETA, ao Exército Guerrilhei­ro do Povo Galego Ceive – no início dos idos de 90 – e mais recentemen­te contra a Resistênci­a Galega. Além de várias investigaç­ões em sede própria, também em cooperação com parceiros internacio­nais, visando o Daesh uma rede de marroquino­s dedicada ao recrutamen­to e financiame­nto e outra de combatente­s terrorista­s estrangeir­os portuguese­s que estiveram ativos na Síria e Iraque – de que já resultaram condenaçõe­s no Tribunal Criminal de Lisboa, em processos julgados em 2019 e 2020. Não esquecendo as sucessivas estocadas que ainda nos anos 90, em 2007 e 2016, foram desferidas sobre grupos de extrema-direita violenta.

“A relação entre a Polícia Judiciária e o Serviço de Informaçõe­s de Segurança está, porventura, ao melhor nível na convergênc­ia, criação de sinergias e espírito de colaboraçã­o.”

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