António Araújo
A traição da tradição
Atradição já não é mesmo o que era. Agora, ao que parece, há até tradicionalistas e Tradicionalistas, e o que distingue uns dos outros é bem mais do que o uso de uma maiúscula. Em bom rigor, os Tradicionalistas são inimigos figadais dos tradicionalistas, pelo menos a crer em quem os acompanhou de perto e estudou a fundo, como foi o caso de Benjamin Teitelbaum, professor na Universidade do Colorado e autor de Guerra Pela Eternidade: o retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista, cuja tradução brasileira acaba de sair há pouco, pela Unicamp. Recomenda-se muitíssimo: Teitelbaum entrevistou e conviveu durante anos a fio com os próceres do Tradicionalismo – Steve Bannon, o russo Aleksandr Dugin ou o brasileiro Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro. O retrato que nos traz é assombroso.
O crescimento do populismo tem feito nascer dezenas de obras que indagam esse fenómeno do ponto de vista político e sociológico, mas poucas há que se dediquem a tentar saber quais são ao certo as ideias dos seus líderes, porque as têm, e às vezes até arreigadas, sendo simplista – e deveras estúpido – rotulá-los apenas como um bando de oportunistas sem ideologia, gente tão-só interessada em alcançar o poder em beneficio próprio e das suas camarilhas.
Há um fundo de verdade nessa caracterização, bastando ver que todos os líderes populistas, sem excepção, se viram envolvidos em casos gravíssimos de corrupção e compadrio, não havendo um só que não tenha, antes de tudo mais, favorecido filhos e enteados logo que chegou ao poder. Mas, à parte isso, e de uma estratégia “que se apresenta aos eleitores incautos e cujos fundamentos são mais densos e profundos do que slogans campanha como o M.A.G.A. de Donald Trump (“Make America Great Again”) ou o “Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos” de Jair Bolsonaro.
Quando eclodiu a covid, não tardou muito a revelar-se a má relação que todos os populistas mantêm com a ciência e com os cientistas, sendo no mínimo estranho que, de Bolsonaro a Salvini, passando por Trump e Orbán, não houvesse um só que ora não tivesse recusado as máscaras ou as vacinas, ora não tivesse embarcado nas fantasias da hidroxicloroquina de Didier Raoult. A opção sistemática pela charlatanice em detrimento da verdade científica tem várias causas, mas decorre, acima de tudo, de uma razão ideológica, assente no ódio profundo à modernidade e a tudo quanto dela derivou: ciência, tolerância, direitos humanos.
O fascínio dos Tradicionalistas por uma “idade de ouro” pré-moderna baseia-se nuns quantos desvarios que foram propalados por “filósofos” hoje desacreditados e quase ignorados, mas que tiveram uma influência profunda em Bannon, Dugin e Olavo de Carvalho. Entre eles, René Guénon, um francês metafísico convertido ao sufismo islâmico, que adoptou o nome Abdel Wâhed Yahiâ e morreu no Cairo em 1951. A sua obra mais conhecida intitula-se, pois claro, Revolta Contra o Mundo Moderno, e é espantoso notar que os ideólogos reaccionários se arvoram em paladinos da “civilização ocidental” contra o islamismo e contra a ameaça dos imigrantes e, ao mesmo tempo, têm por grande referência intelectual um místico que odiava o Ocidente, cujas últimas palavras em vida foram “Alá” e que era um cultor fervoroso das espiritualidades e dos esoterismos mais bizarros provindos do Oriente.
O grande discípulo de Guénon, e outro autor de cabeceira dos Tradicionalistas, foi Julius Evola, um barão italiano estranhíssimo, conhecido pelos seus escritos antissemitas, antiliberais e antidemocráticos (defendia, por exemplo, que as mulheres deviam completa subordinação aos homens), pela sua admiração incondicional por Himmler e pelo nazismo, mas também pelas suas crenças no esoterismo e no sobrenatural. É no mínimo bizarro que, em pleno século XXI, os ideólogos de Trump ou de Bolsonaro tenham por guru um homem como Evola, que se intitulava “superfascista” e que acreditava em fantasmas e nos poderes telepáticos e que era um crente – e praticante – da alquimia. A última das figuras-chave desta galeria patética é Frithjof Schuon, um suíço que estudava a sabedoria oculta das religiões e que se fixou nos Estados Unidos, onde fundou uma seita que, além das habituais suspeitas de abusos sexuais, praticava ritos da tradição sioux, nos quais Schuon aparecia aos fiéis, obviamente, como sumo sacerdote, envergando peles de urso e um chapéu com chifres em tudo semelhante ao “xamã do QAnon”, um dos idiotas que tentaram invadir o Capitólio no passado Janeiro.
Este trio de loucos – Guénon, Evola e Schuon – não foi uma referência intelectual distante para os ideólogos de Trump ou Bolsonaro: Olavo de Carvalho, por exemplo, foi membro da seita de Frithjof Schuon, participou nos rituais sioux, tornou-se prosélito do islamismo, foi nomeado muqaddam, com o nome de Sidi Muhammad e o encargo de fundar uma taiqa (escola sufi) no Brasil. Mais tarde, fixou-se nos confins daVirgínia, nos Estados Unidos, onde ainda hoje vive, e é de lá que ministra as suas palestras em que defende que as mulheres têm um “protótipo celestial” baseado na beleza, na pureza e na passividade. Declinou um convite de Bolsonaro para fazer parte do seu governo, preferindo manobrar na sombra e tendo papel determinante na escolha de vários ministros-chave, como Ernesto Araújo para as Relações Exteriores e RicardoVélez Rodríguez para a Educação. Para termos uma noção do seu peso, basta dizer que quando o vice-presidente Hamilton Mourão atacou o excesso de influência de Olavo e lhe recomendou publicamente que “voltasse a ser astrólogo”, os filhos de Bolsonaro uniram-se em torno do guru e o presidente condecorou-o com o grau máximo da Ordem do Rio Branco, a mais alta distinção diplomática do Brasil, com isso desautorizando o seu vice-presidente e sinalizando o seu apoio a Olavo de Carvalho, um homem que denuncia os escritos de Galileu ou Newton como “charlatanismo”, que considera o aquecimento global uma invenção da família Rockefeller e do Clube de Bildberg (também responsável pelas “campanhas mundiais abortista e gayzista” e pela “nova religião global biónica”). Depois de ter sustentado que estavam a ser usadas células de fetos na fabricação da Pepsicola (!), o ideólogo de Jair Bolsonaro afirmou, em Março de 2020, que a ideia de que a covid-19 poderia ser uma doença mortal não passava de uma “invenção” decorrente da “mais vasta manipulação de opinião pública que já aconteceu na história humana.” No Brasil, a covid já fez mais de 600 mil vítimas mortais.
As contradições são mais do que muitas: os Tradicionalistas recordam com nostalgia a pré-modernidade anterior à Revolução francesa, mas não hesitam em recorrer às tecnologias mais modernas para difundir as suas mensagens e fake news (cerca de 30% das notícias veiculadas nas redes sociais em Inglaterra, favoráveis ao Brexit, foram produzidas por robôs, a maioria das quais russos); dizem querer defender o Ocidente, mas alinham à descarada com a Rússia de Putin, apostada na desestabilização da Europa e na destruição da NATO e da UE; proclamam-se cristãos, muitos deles católicos, mas tudo fazem para minar a autoridade do Papa Francisco, alinhando com integristas pré-Vaticano II, correntes evangélicas sectárias e até fundamentalistas islâmicos; criticam o materialismo do nosso tempo, mas enredam-se em esquemas fraudulentos de milhões e cultivam a amizade dos super-ricos; proclamam-se defensores dos pobres e dos descamisados, mas acreditam que os povos não devem ser governados por democracias, antes por elites iluminadas – de que eles, naturalmente, são a vanguarda mais luminosa de todas. O seu projecto, abertamente assumido, é lançar o caos e destruir as instituições, na crença de que só assim, sobre as ruínas e os escombros de tudo o que conhecemos e prezamos, será possível fazer renascer das cinzas uma nova “civilização”. É por isso que Trump, Bolsonaro ou Orbán são dos presidentes menos “institucionais” que o mundo conhece, que afrontam pela violência todos os poderes constituídos, sobretudo o judicial (como se viu esta semana no Brasil, e já se tinha visto na invasão ao Capitólio ou nas reformas constitucionais da Hungria), que nomeiam e despacham colaboradores a uma velocidade inaudita, que proferem deliberadamente afirmações bombásticas para horrorizar o establishment (como sucedeu com as tiradas homofóbicas ou misóginas de Trump ou de Bolsonaro).
Nada disto tem a ver com a tradição ocidental e, menos ainda, com o autêntico conservadorismo. Tudo isto é, aliás, a mais completa antítese do que sempre foram os tradicionalistas conservadores, goste-se ou não deles. Vejam o legado dos novos Tradicionalistas: Steve Bannon caído em desgraça, a contas com a justiça por fraude e branqueamento de capitais, acusações não totalmente sanadas por um escandaloso perdão presidencial concedido por Trump nos últimos dias do seu mandato; na Rússia, Aleksandr Dugin demitido de professor na Universidade de Moscovo e proibido de entrar nos EUA, no Canadá e em diversos países à conta de declarações inauditas a favor do aniquilamento da Ucrânia; Jason Jorjani, um dos fundadores da sinistra Alt-Rigth Corporation, afastado do ensino por declarações em que saudava o regresso próximo dos campos de concentração à Europa (e pelo prognóstico de que, em 2050, o rosto de Hitler estaria impresso nas notas de euro…); Michael Bagley, outro nome grande destas conspiratas, preso por lavagem de dinheiro do cartel da droga de Sinaloa.
Por cá, ainda não chegámos a tanto, demos graças aos deuses. Contudo, há franjas na direita portuguesa que, infelizmente, ainda julgam que as novas luminárias do Tradicionalismo têm coisas aproveitáveis e dignas de serem escutadas. Até por isso, convém perceber quem são as fontes inspiradoras dessa escumalha, um bando criminoso e perigoso que conjuga duas perversões letais, a loucura mitómana e a total ausência de princípios morais e de escrúpulos.
Na nossa versão doméstica, o Chega, entre outras tropelias, tentou legalizar-se em 2019 com milhares de assinaturas irregulares, inclusive de menores (!), e, há dias, viu o Ministério Público no Tribunal Constitucional pedir a ilegalização das últimas alterações aos estatutos do partido, ocorridas em Setembro de 2020. Se é assim na oposição, como seria esta gente se chegasse ao governo? Quem de bom senso poderá confiar no Chega para parceiro de coligação? Era bom que os simpatizantes de André Ventura abrissem os olhos de vez e começassem a perceber com quem andam metidos.