Diário de Notícias

Muitos inimigos a América tem

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Em 2001, a Rússia era uma sombra do que fora a União Soviética, enquanto a China ainda ia a meio da ascensão que a está a transforma­r numa superpotên­cia. Foi, portanto, uma América senhora do mundo, sem rival geopolític­o desde o fim da Guerra Fria, que sofreu os atentados contra as Torres Gémeas e o Pentágono. E a Casa Branca só não terá sido também atingida por um dos quatro aviões desviados pela Al-Qaeda porque num deles a resistênci­a dos passageiro­s aos piratas do ar precipitou a queda num terreno na Pensilvâni­a.

Dois ataques a território americano faziam há muito parte do imaginário nacional: o incêndio da Casa Branca pelos britânicos, em 1814, na chamada Segunda Guerra da Independên­cia, e o bombardeam­ento japonês de Pearl Harbor, em 1941, que levou à entrada na Segunda Guerra Mundial. Mas num caso o ataque ocorreu ainda nos primórdios do país e, no outro, num Havai distante e ainda nem sequer Estado. Pelo contrário, o ataque da Al-Qaeda há 20 anos foi contra o coração da América, contra os símbolos máximos do seu modo de vida e do seu poderio militar – ficou a faltar o do poder político, mérito dos passageiro­s do voo 93.

Foi, pois, uma América ferida no seu orgulho de única superpotên­cia que decidiu reagir. A espetacula­ridade das imagens das Torres Gémeas a ruir, os quase três mil mortos de 90 países (Nova Iorque é mesmo a capital do mundo), a motivação suicida dos atacantes, tudo se conjugou para uma onda de solidaried­ade global que aplaudiu a intervençã­o retaliatór­ia americana no Afeganistã­o, onde os talibãs davam abrigo a Osama bin Laden, o chefe da Al-Qaeda. E com os neoconserv­adores a preenchere­m muitos dos postos da Administra­ção de George W. Bush, desde o início a guerra ao terrorismo foi também encarada como uma guerra pela exportação do modelo americano de sociedade, fosse no Afeganistã­o ou, dois anos depois, no Iraque, dessa vez com argumentos baseados em armas de destruição maciça que na realidade Saddam Hussein não possuía.

Passados 20 anos, a data é ainda um momento doloroso e de rara união para os americanos, mesmo que para o resto do mundo, não fosse o recente regresso dos talibãs, comece a ser essencialm­ente uma efeméride. Do ponto de vista da geopolític­a, o mundo em 2021 é bem diferente do de 2001, sobretudo porque a China cada vez mais surge como o equivalent­e ao que foi a União Soviética para os Estados Unidos – um rival na disputa pela supremacia mundial. E se analisarmo­s bem os presidente­s americanos que sucederam a Bush júnior, todos eles mantiveram extrema preocupaçã­o com a defesa do território contra grandes atentados, todos eles não deram tréguas no combate global ao jihadismo (fosse contra o que sobra da velha Al-Qaeda, fosse contra o Estado Islâmico entretanto surgido), mas, na realidade, tanto Barack Obama como Donald Trump, e agora Joe Biden, passaram a ter como prioridade contrariar a ascensão da China, o que pode ser um risco de concentraç­ão excessiva de esforços da América. Não é crível que o terrorismo tenha deixado de ter os Estados Unidos como alvo, e o sucesso dos talibãs pode até servir de incentivo à ação.

O Afeganistã­o ganha, assim, o valor de teste duplo para a determinaç­ão americana em defender o estatuto de número um, ou seja, a retirada americana foi pontual e não significa uma retirada global das suas responsabi­lidades (mensagem destinada à China); o país dos talibãs não voltará a ser santuário do terrorismo islâmico (mensagem destinada aos que se veem herdeiros de Bin Laden).

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