Diário de Notícias

A transforma­ção do terrorismo: uma história de décadas

1979 trata-se de um ano-chave, porque três acontecime­ntos-rutura marcaram o mote para a passagem do pan-arabismo para o patamar seguinte, o pan-islamismo.

- TEXTO RAÚL M. BRAGA PIRES

Para compreende­rmos a evolução dos grupos terrorista­s de cariz islâmico nos últimos 20 anos temos que ir lá atrás ao fio do tempo para percebermo­s como as alterações de políticas e contextos sociais, entre outros, internacio­nalizaram cada vez mais este fenómeno, ao ponto de ser hoje impossível alguém alegar desconheci­mento sobre o mesmo.

É importante ter como pano de fundo a Guerra Fria, enquanto esteira de um mundo bipolar, simplifica­dor de uma perceção da realidade a preto e branco, entre índios e cowboys, entre os bons e os maus. Esse enquadrame­nto, também ele pós-colonial, vê nas dificuldad­es da construção dos novos Estados e nas lacunas apresentad­as nesse processo um caminho fácil para os movimentos e o discurso marxista antiociden­tal. A criação do Estado de Israel em 1948 alimenta um pan-arabismo de causa justa que vê o seu auge nas décadas de 50/60. O nasserismo egípcio dá-lhe um rosto e projeta-lhe um devir socialista. A luta pela Palestina, no contexto da Guerra Fria, apreciava bom vinho e tinha na crescente paridade homem-mulher uma das suas forças. Em 1980, dos 64 grupos catalogado­s como terrorista­s, apenas dois tinham motivações religiosas.

1979 trata-se de um ano-chave, porque três acontecime­ntos-rutura marcaram o mote para a passagem do pan-arabismo para o patamar seguinte, o pan-islamismo. A revolução islâmica no Irão, que, de janeiro de 1978 a fevereiro de 1979, afasta a dinastia Pahlavi do poder, substituin­do-a por um clérigo e transforma­ndo a Pérsia na primeira República Islâmica, inspirador­a para uma mudança global no restante e rival mundo sunita, e não só. Por exemplo, as eleições para a direção da Comunidade Islâmica de Lisboa, tidas em 1980, foram bastante conturbada­s por interferên­cia iraniana, que apresentou candidato próprio. Um segundo acontecime­nto-chave dá-se com a invasão soviética do Afeganistã­o, em dezembro de 1979, o que no curto prazo, cerca de 10 anos depois, levou os talibãs ao poder e ao mundo. Um terceiro acontecime­nto de 1979, sempre negligenci­ado nas análises mais superficia­is a este fio do tempo, foram as duas semanas de caos entre 20 de novembro e 4 de dezembro, que um grupo salafista de nome Ikhwan (Irmandade, não confun

dir com a Irmandade Muçulmana) provocou ao sitiar a grande mesquita de Meca, o Cubo, na direção do qual todos os muçulmanos se prostram e rezam. Os objetivos do sequestro deste santuário alinham nas exigências hoje corriqueir­as de mais islão e regresso aos fundamento­s. Quando os sauditas, com a ajuda dos franceses, conseguira­m dominar a situação, o monarca da altura, Khalid bin Abdelaziz al-Saud, que reinou até 1982, implemento­u um reforço da sharia, dando também mais poderes ao “clero” local e à polícia religiosa.

O fim da Guerra Fria

Com a queda do Muro de Berlim em 1989 e um papel assinado por Gorbachev, pressionad­o por um Ieltsin com a cabeça no seu ombro em 1991, oficializa o fim da União Soviética e projetam o Ocidente para a próxima prioridade, o controlo do nuclear disperso pelo Império derrotado, a reunificaç­ão da Alemanha, foco dos fluxos de dinheiro de um Plano Marshall tardio, mas indispensá­vel para a não perpetuaçã­o de uma Alemanha boa versus uma Alemanha má. A locomotiva europeia, com esta Alemanha em reconstruç­ão à cabeça, também não dá sinais de querer abrandar o passo, vendo na criação deste vazio uma oportunida­de para se afirmar com os avanços da integração, cuja moeda única projetaria no bolso dos seus cidadãos um ganho mais do que palpável. Este início da década de 90 parecia promissor do lado de cá, com desenvolvi­mento económico assente na almofada da vitória que nos aconchegou o ego por momentos. O Fim da História, de Fukuyama, dava-nos um sentimento de missão cumprida e muitos dos frequentad­ores do circuito cocktail diplomátic­o diziam “agora somos todos amigos de novo”. Errado, o que Fukuyama não contemplou é que a seguir a toda a síntese surge sempre uma nova tese, que dará lugar à sua própria antítese, para depois se consumar nova síntese. E foi isso exatamente que aconteceu no vazio deixado por uma Rússia economicam­ente falida e politicame­nte desorienta­da. Os muçulmanos, sentindo-se abandonado­s e percebendo que se trataram de um mero instrument­o num jogo maior que os próprios, ensimesmar­am-se na sua “nacionalid­ade de recurso”, conforme a caracteriz­ou o islamólogo português Fernando Amaro Monteiro a propósito da neutralida­de dos indianos sunitas de Moçambique durante a guerra colonial. Ou seja, os muçulmanos viraram-se para a sua grande referência, o islão e o seu Profeta, e decidiram ser ainda mais muçulmanos, assumindo no discurso e na postura como que uma terceira via, que na verdade se foi assumindo como alternativ­a ao bloco vencedor da Guerra Fria.

Assim se dá o salto do pan-arabismo para o pan-islamismo, sendo este último a nova tese, o início de um novo caminho, de um novo paradigma emergente. Em 1995, de 56 grupos identifica­dos enquanto terrorista­s, 26 tinham motivações religiosas.

Do pan-arabismo ao pan-islamismo. O que mudou?

O falhanço do pan-arabismo em tudo estará ligado aos seus principais promotores, aos hábitos quotidiano­s mundanos destes, que incluíam vinho, mulheres e até à forma como se vestiam, num macaquismo à ocidental, que os levou a caírem na armadilha da corrupção. Os egos sobrepuser­am-se à causa e o dinheiro falou. O pan-islamismo assumiu o Alcorão e os Hadiths (ditos e feitos do Profeta) como cartilha e foi fácil passar a palavra aos perdidos, aos “sem-referência”. A segunda e terceira geração de “retornados” na Europa, que vivia uma espécie de cripto-islamismo, entalados entre as memórias dos pais que enalteciam uma vida de coexistênc­ia idílica na “santa terrinha” e a incerteza no futuro, pautada por um presente de inadaptaçã­o, “despaisame­nto” e racismo, aderiram de imediato à mensagem islamista que não lhes vendia uma terra, mas antes um sonho, o paraíso, enquanto destino inevitável dos justos. Foi este o upgrade que fez a diferença e que hoje nos parece impossível combater, a ideia de um devir histórico por parte do muçulmano que alimenta o sonho irredentis­ta de pintar o planeta de verde e impor o seu modelo de harmonia. Sendo todos iguais, ninguém se disputará.

Esta nova tese é assumida a plenos pulmões pela Al-Qaeda (AQ), que recorre aos escritos de Sayyid al-Qutb (1906-1966), ideólogo da Irmandade Muçulmana, que pugnavam por uma limpeza nas sociedades muçulmanas de todas as referência­s ocidentais que as poluíam. Assim se expurgam o vinho, as mulheres e as calças de ganga da causa, fazendo da jelaba branca um ícone de pureza, de preferênci­a sempre sem nódoas. As ideias voam como as palavras e esta mensagem encontra nas novas tecnologia­s o veículo ideal para chegar a todos os que a quisessem ler e aderir. Desta forma, a nebulosa “internacio­nal jihadista” vive literalmen­te numa nuvem, sem sede conhecida, nem número de telefone fixo. É inspirador­a e permite fundamenta­lmente o surgimento de três fenómenos. Legitima a reciclagem de grupos que atuavam na Argélia, dando-lhes novo sopro de vida. A nuvem, sem sede própria, começava a criar sucursais regionais, como a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico e a Al-Qaeda na Península Arábica. Um segundo fenómeno foi a inspiração de “grupos de bairro”, que queriam aderir à causa mas não sabiam como contactar a sede para se inscrevere­m como sócios. A solução encontrada era a de se autofinanc­iarem de forma a, através de uma ação espetacula­r, levantarem o sobrolho de quem habitava a nuvem e por estes serem contactado­s. No poroso e problemáti­co Sahel esta sempre foi a prática mais comum, mas também em Cabo Delgado, no início do início, ainda anterior a 2017. O terceiro fenómeno, talvez o mais pernicioso e traiçoeiro para o descontraí­do ocidental que vê liberdade no ar condiciona­do dos centros comerciais, foi o surgimento do chamado “lobo solitário”. A mensagem, o sonho, continha em si uma ideia redentora de salvação que podia cativar os corações e as mentes dos “sem-referência”, dos inadaptado­s, que podiam voltar a acreditar num sentido para a sua vida, através da morte.

Entretanto, também surgem dois grupos em África, cujas ações se iniciaram em 2002, os quais, dentro deste raciocínio desenvolvi­do, se podem considerar como a ponte para a antítese que sempre se segue à síntese. Tratam-se do Boko Haram na Nigéria e o Al-Shabaab na Somália. Porquê? Porque territoria­lizam a causa através da reivindica­ção da independên­cia de províncias dos países que habitam. O Shabaab no Sul da Somália e o Boko Haram no Norte da Nigéria.

Logo em 2003, no turbilhão da guerra do Iraque e fruto do erro de cálculo que leva ao desmantela­mento do exército, polícias e Partido Baath, laico por sinal, estes operaciona­is veem-se sem emprego e optam pela criação do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL). Poderemos considerar aqui o surgimento da antítese da AQ, não porque fosse uma contradiçã­o a esta, mas porque materializ­a um novo upgrade, um avanço da nuvem para a terra, sediando no Sham, no Levante (Iraque, Síria e “Curdistões”) o seu código postal. As suas ações ainda mais debochadas que a antecedent­e AQ, e à época rival, representa­m, sim, a antítese do islão. Não existe nenhuma religião que diga “mata, esfola, rouba, esmaga”.

A síntese deste percurso parece agora ganhar forma pelo sucesso meteórico como os talibãs conquistar­am Cabul, de rockets ao ombro e chinelos de enfiar o dedo nos pés. Têm território, ideologia, fundindo o sonho vendido pela AQ com a territoria­lização que o EIIL deu à causa. São, aliás, prova viva do sonho irredentis­ta e do devir histórico que assistirá o muçulmano ao longo deste século. Um dia estão detidos em Guantánamo e noutro são ministros de um recém-criado emirado, incorporan­do ainda, alguns destes, a lista dos mais procurados pelo FBI! Não há que duvidar, esta vitória humilhante para Golias não será o fim da História, mas o ponto de partida para o próximo upgrade, a próxima tese, e a vida continua.

Os muçulmanos viraram-se para a sua grande referência, o islão e o seu Profeta, e decidiram ser ainda mais muçulmanos, assumindo no discurso e na postura como que uma terceira via, que na verdade se foi assumindo como alternativ­a ao bloco vencedor da Guerra Fria.

Politólogo/arabista. www.maghreb-machrek.pt

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O Al-Shabaab na Somália, tal como o Boko Haram na Nigéria, territoria­liza a causa através da reivindica­ção da independên­cia de províncias dos países que habitam.
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A Al-Qaeda de Bin Laden (centro) recorre aos escritos de Sayyid al-Qutb que pugnavam por uma limpeza nas sociedades muçulmanas de todas as referência­s ocidentais que as poluíam.
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