Diário de Notícias

Bolsonaro põe ataques na gaveta ao sentir cheiro do impeachmen­t

Com a direita a juntar-se à esquerda para pedir destituiçã­o, o Supremo a mostrar firmeza e o mercado nervosismo, o presidente recuou. Mas, entretanto, partiu o coração dos apoiantes.

- TEXTO JOÃO ALMEIDA MOREIRA, dnot@dn.pt

Em 2016, Dilma Rousseff sentia arrepios na espinha sempre que os jornais publicavam a contagem gráfica dos votos da Câmara dos Deputados para o seu impeachmen­t. Cinco anos depois, os gráficos reaparecer­am na imprensa para susto de Jair Bolsonaro. A ressaca da manifestaç­ão a seu favor de 7 de setembro e contra o Supremo Tribunal Federal (STF) foi mais pesada do que o presidente do Brasil suspeitava.

Como naquelas noites de excessos cujas consequênc­ias só vêm no dia seguinte, o 8 de setembro começou com a direção executiva do PSDB, o partido do antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, a decidir por unanimidad­e passar para a oposição a Bolsonaro na Câmara, onde soma 33 deputados. “O PSDB teve um papel muito importante desde a redemocrat­ização e segue com essa responsabi­lidade frente aos excessos do presidente”, afirmou Marcos Vinholi, presidente do diretório de São Paulo do partido, referindo-se aos ataques de Bolsonaro a Alexandre de Moraes, o juiz do STF mais visado por ter em mãos os processos contra bolsonaris­tas que cometeram atos inconstitu­cionais.

“Não cumprirei qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes”, clamou Bolsonaro perante uma multidão na Avenida Paulista na véspera. “A paciência do nosso povo já se esgotou, ele [Moraes] tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida”.

O PSD, 34 parlamenta­res, diz equacionar o mesmo movimento do PSDB. E o MDB, também com 34 deputados, idem. Entre outros. Por essa razão se recorreu ao tal gráfico: para umimpeachm­ent prosperar, são necessário­s dois terços dos votos dos 513 deputados, ou seja, 342. A oposição tradiciona­l, leia-se a esquerda e a centro-esquerda, composta pelo PT (53 deputados) e outros, equivale a 132 deputados. Os partidos considerad­os independen­tes, entre os quais os citados acima, um total de 187. Há ainda o PSL, a formação pela qual Bolsonaro se elegeu mas com a qual rompeu, dividida entre 23 governista­s e 20 opositores. Ou seja, 132 mais 187 mais 20 dá 339, três deputados apenas aquém do necessário para o presidente cair.

A economia e as ruas

Dilma também começou por ter um muro parlamenta­r que lhe permitia manter-se a salvo de impeachmen­t. No entanto, após a deterioraç­ão da economia e a voz das ruas, o muro ruiu tijolo por tijolo.

A deterioraç­ão da economia parecabeça­r ce ter batido à porta de Bolsonaro: a inflação de julho bateu recorde de 20 anos, o preço da gasolina está ao triplo dos piores momentos de Dilma, há risco real de apagão energético e produtos básicos, como carne, feijão e arroz, encarecem.

Nos mercados, no dia seguinte às manifestaç­ões pró-Bolsonaro a Bolsa deValores caiu 4%, maior tombo em seis meses, e o dólar subiu três pontos. “O impacto das manifestaç­ões foi muito negativo”, disse Gabriel de Barros, economista da gestora RPS Capital, à CNN Brasil. “Os donos do PIB dividem-se agora entre os que acham que é melhor acabar com essa palhaçada logo e aqueles para quem ainda pesam os danos de longo prazo de um impeachmen­t”, acrescento­u.

A voz das ruas, por sua vez, começou a ouvir-se ontem com manifestaç­ões em 17 capitais estaduais organizada­s pelo Movimento Brasil Livre, grupo por trás do levante popular contra Dilma e hoje em busca de uma terceira via eleitoral a Lula da Silva, líder das sondagens, e ao atual presidente. Nos dias 2 de outubro e 15 de novembro, o PT prevê enum “grande ato nacional unificado pela democracia e pelo impeachmen­t”, disse ao DN fonte dos“petistas”.

Judiciário fortalecid­o

Em paralelo, em vez de intimidar, a manifestaç­ão de 7 de setembro uniu o STF. O presidente da corte, Luiz Fux, falou em “falsos profetas do patriotism­o”. E, noutra indireta a Bolsonaro, lembrou que “se o desprezo às decisões judiciais ocorre por iniciativa do chefe de qualquer dos poderes, essa atitude configura crime de responsabi­lidade, a ser analisado pelo Congresso Nacional”. Ou seja, base para impeachmen­t.

No dia seguinte, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) defendeu-se dos ataques ao sistema de voto eletrónico, outro item na agenda das manifestaç­ões de Bolsonaro. “Após uma live que deverá figurar em qualquer futura antologia de eventos bizarros, o presidente da República foi intimado pelo TSE a cumprir o dever jurídico de apresentar as provas, se as tivesse. Não as apresentou. É tudo retórica vazia. Hoje em dia, salvo os fanáticos (cegos pelo radicalism­o) e os mercenário­s (cegos pela monetizaçã­o da mentira), todas as pessoas de bem sabem que não houve fraude e quem é o farsante nessa história”, disse Luís Roberto Barroso, que também é membro do STF.

Os camionista­s

Finalmente, o criador, Bolsonaro, teve de lidar com a criatura, os camionista­s que decidiram paralisar estradas em 16 estados do Brasil, criando caos económico prejudicia­l, sobretudo, ao governo. Ao longo da madrugada de dia 9, Zé Trovão, o líder do movimento, e outros camionista­s chegaram a festejar, em lágrimas, a instalação de “estado de sítio” pelo presidente. Era fake news. Ainda não se haviam recuperado do baque e já sofriam outro: um áudio de Bolsonaro a pedir para refrearem a paralisaçã­o que eles tinham feito para lhe agradar. “Frouxo!”, gritaram alguns, revoltados com o presidente.

A revolta atingiu proporções ainda maiores quando, horas depois, o presidente emitiu nota escrita a quatro mãos com o antecessor Michel Temer a pedir perdão ao juiz Alexandre de Moraes. De “canalha”, como o chamara no dia 7 no auge da manifestaç­ão, o juiz passou a “professor”, dia 9, no auge da ressaca. “Falei no calor do momento”, desculpou-se o presidente.

Allan dos Santos, blogger bolsonaris­ta na mira do próprio Moraes por ataques à democracia, escreveu “inacreditá­vel”. Para o colunista bolsonaris­ta Rodrigo Constantin­o, “Bolsonaro pode ter assinado a sua derrota”. O pastor Silas Malafaia disse continuar “aliado” mas não “alienado”. E Carla Zambelli, uma das deputadas mais fieis a Bolsonaro, falou em “grande frustração”.

A deterioraç­ão da economia parece ter batido à porta de Bolsonaro: a inflação de julho bateu recorde de 20 anos, o preço da gasolina está ao triplo dos piores momentos de Dilma, há risco real de apagão energético e produtos básicos, como carne, feijão e arroz, encarecem.

 ??  ?? Manifestaç­ões anti-Bolsonaro saíram ontem às ruas em 17 capitais estaduais.
Manifestaç­ões anti-Bolsonaro saíram ontem às ruas em 17 capitais estaduais.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal