Succession: uma tragédia shakespeariana As semelhanças com o rei Lear estão lá desde o princípio, ou não fosse a linha mestra de Succession a interrogação sobre qual dos filhos vai suceder a Logan na direção da Waystar Royco.
HBO É uma das melhores séries no panorama atual e chega agora à terceira temporada. Succession não perdeu um décimo da sua monstruosa dinâmica familiar – apenas um dos filhos tentou mudar as regras do jogo. Estreia hoje na HBO Portugal.
Nas várias entrevistas que Brian Cox deu nos últimos dias, do The Late Show, de Stephen Colbert, ao The Guardian, uma pergunta se impôs: Logan Roy ama os seus filhos? Para o ator escocês é importante esclarecer, antes de mais, que esse magnata a quem dá rosto (personagem que lhe valeu um Golden Globe) não é simplesmente um homem mau. “Ele está em vias de cometer um ato de vingança contra o resto da humanidade, mas por razões realmente legítimas. Aquilo que é difícil para ele, tal como para Lear, é que ama os seus filhos e espera ver parte desse amor correspondido, em vez de ser visto por eles como uma caderneta de cheques ou o caminho para a elegibilidade”, resumiu ao jornal britânico.
As semelhanças com o rei Lear estão lá desde o princípio, ou não fosse a linha mestra de Succession a interrogação sobre qual dos filhos vai suceder a Logan na direção da Waystar Royco, grupo empresarial que detém imprensa tabloide, cruzeiros e parques temáticos. Na terceira temporada desta distinguida série de Jesse Armstrong, verdadeiro trunfo da HBO neste momento, que acumula nove Emmys, a tensão familiar continua tão irresistível como na primeira e segunda temporadas.
O que caracteriza Succession é, por um lado, a sensação de que tudo está a acontecer em tempo real e, por outro, um calor humano que deriva de personagens só aparentemente pouco humanas – por vezes mesmo monstruosas. Todos estão a fazer o seu jogo em benefício próprio, mas, dê por onde der, o único vencedor até agora foi Logan. “Amor ou medo, tanto faz”, disse ele, ainda no início da série, sobre os sentimentos de quem está na sua órbita, como que definindo a ambiguidade de emoções que dançam em cada um dos episódios, quase sempre erguidos sobre situações de índole empresarial, como conferências, reuniões familiares e festas, em que há uma decisão a ser tomada pelo titã do mundo dos negócios.
No último episódio da segunda temporada ficámos suspensos naquele indefinido sorriso de Logan ao assistir à alta traição do seu filho Kendall ( Jeremy Strong), que num comunicado à imprensa, em direto, o acusou de ter conhecimento das práticas de má conduta sexual dentro da empresa... Bem, na verdade foi o pai que instigou este golpe de
Judas ao dizer a Kendall que para ser digno do seu lugar de poder tinha de ter instinto matador como ele. De resto, para o espectador há qualquer coisa de revigorante em ver uma personagem que estava feita num farrapo de repente erguer-se como uma fénix renascida das cinzas.
Armageddon
A espera foi longa, devido à pandemia – o referido episódio é de outubro de 2019 –, mas as consequências deste patricídio em público estão no centro da nova temporada, que no programa The Late Show ,de Colbert, ficou descrita numa palavra (entre outras): Armageddon. Ou
seja, batalha final. Sem revelar detalhes, pode-se dizer que Kendall assumiu definitivamente uma pose messiânica e voga sobre a ideia de roubar a empresa ao pai rodeando-se das pessoas que considera mais cool e competentes para levar o seu “plano” avante. Desta feita, trata-se sobretudo de uma guerra interna e mediática, com esse filho rebelde a proclamar a queda do patriarcado e a mostrar-se comprometido com as vítimas, enquanto fica claro que, na realidade, ele só quer mesmo derrubar o pai. Por sua vez, o gangue de Logan continua a trabalhar as estratégias corporativas sob a sua alçada ao ritmo a que fomos habituados, com um vaivém de deliberações ligadas ao futuro da empresa, conversas de bastidores que só refletem a lógica do ganho próprio e o palavreado desbragado que é apanágio da série.
A escrita dos diálogos permanece naquele estado puro da linguagem frenética, aguçada e sem filtro que torna Succession, por si só, um sistema climático, entre o horror e o riso. E essa arte tem também que ver com a nacionalidade britânica da equipa de guionistas do criador Jesse Armstrong, que ainda por cima vêm da comédia. Numa entrevista coletiva ao The Guardian, um deles, Tony Roche, sublinha-o com precisão: “Uma das coisas que talvez funcione como algo incomum na série é que tem um britanismo no seu tom. É bastante irreverente com o assunto, não respeita os superiores.”
Seja como for, uma vez mais é preciso ter cuidado com o desrespeito e a ambição que andam no ar e que fragilizam a peças de carne e osso deste xadrez. O nível dessa ambição estabelece a coreografia, mais feia ou mais bonita, de afetos idiossincráticos entre os quatro irmãos milionários. Sim, porque, tal como Kendall Roy, também Shiv (Sarah Snook), Roman (Kieran Culkin) e até o inútil Connor (Alan Ruck) querem subir ao trono. O problema é que, quanto mais eles fazem transparecer ao pai o desejo de serem os eleitos, cada um com a sua noção de mérito, mais o rei Lear que há em Logan aperta a jogada ou baralha as regras. E é nessa dinâmica familiar selvagem que Succession faz pairar o fantasma do sacrifício de sangue. Meus senhores, isto é Shakespeare no século XXI, numa torre de Nova Iorque.