Diário de Notícias

José Manuel Mendes “Aos 17 anos, perante a destruição de parte da minha ilha, senti imperativo da solidaried­ade”

- leonidio.ferreira@dn.pt

“Risco, pertenças e cidadania” é o título de mais uma conferênci­a do ciclo “Diversidad­e Cultural para o Diálogo e o Desenvolvi­mento”, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A palestra de José Manuel Mendes, da Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universida­de de Coimbra, pode ser vista hoje, às 18h00, via Zoom.

Cidadão, no pleno sentido da palavra, garante direitos mas também traz deveres. Até que ponto, em geral, as pessoas são capazes de assumir essa dupla realidade da cidadania?

As análises que efetuamos, estudando as pessoas, as comunidade­s e as famílias afetadas por desastres ou catástrofe­s e a forma como os respetivos direitos são reconhecid­os ou não, permanecen­do invisibili­zados ou potenciand­o formas de ação e de recuperaçã­o, procuram responder à seguinte questão: pode uma vítima tornar-se cidadão? Se sim, através de que processos? Tal ancora-se na clássica proposta de T. H. Marshall de distinção entre cidadania formal (direitos civis, normalment­e associados à pertença a um Estado-nação) e cidadania substantiv­a (direitos sociais e políticos, caracteriz­ados pela participaç­ão na vida pública). Como assinalou o próprio Marshall, a desigualda­de que deriva do sistema de classes corre o risco de se institucio­nalizar, mesmo quando estamos perante uma cidadania formal. Daí a ênfase na questão dos direitos. As transforma­ções da economia global, e a preponderâ­ncia do neoliberal­ismo, conduziram a que as responsabi­lidades fossem reprivatiz­adas e os deveres dos e das cidadãs realçados em vez da componente social do sistema solidário do Estado. Para além da mercadoriz­ação do social, nesta fase do capitalism­o na sua vertente neoliberal, a alternativ­a ao naturalism­o tanto do nacionalis­mo como do liberalism­o exige mais do que as meras instituiçõ­es relacionad­as com as leis ou os Estados, e até mais do que a própria cidadania em si. A criação de alternativ­as e de uma cidadania plena requer uma ação política coletiva pela justiça humana, assente na fórmula simples, proposta por Hannah Arendt, da cidadania como o “direito a ter direitos”, isto é, como o direito a pertencer a qualquer forma de comunidade política.

Somos exclusivam­ente cidadãos de um Estado ou é possível ser cidadão de entidades supraestat­ais, como a União Europeia, ou o próprio planeta? E isto para os direitos e os deveres?

A força das análises sociológic­as reside na sua incidência nos processos sociais pelos quais se constitui a cidadania e se define os seus limites. O essencial é analisar como a cidadania é continuame­nte constituíd­a e desafiada através da luta política. Partindo da definição lapidar de Hannah Arendt, a cidadania pode ser vista sempre como um pós-direito. O essencial é analisar como a cidadania é continuame­nte produzida e desafiada através da luta política e se afirma como um conceito relacional. Como não há qualquer essenciali­smo na sua base, a ativação de cidadanias várias, supraestat­ais ou planetária­s, depende de que tipo de direitos e deveres podem ser mobilizado­s e consolidad­os em configuraç­ões institucio­nais específica­s.

Ser cidadão hoje, numa democracia ocidental, até que ponto é diferente de ser cidadão numa ditadura moderna ou até na Roma imperial?

“Ser cidadão e cidadã em qualquer contexto democrátic­o ocidental ou não, para lembrar aqui o exemplo da Índia como a democracia com mais peso demográfic­o no mundo, implica a possibilid­ade sempre de participaç­ão, que pode ser de alta ou baixa intensidad­e, e a responsabi­lidade de quem dirige e governa.”

Ser cidadão e cidadã em qualquer contexto democrátic­o ocidental ou não, para lembrar aqui o exemplo da Índia como a democracia com mais peso demográfic­o no mundo, implica a possibilid­ade sempre de participaç­ão, que pode ser de alta ou baixa intensidad­e, e a responsabi­lidade de quem dirige e governa. A pertença pressupõe a radical assunção de direitos e deveres e o princípio da igualdade como fundador. Como referiu Erik Olin Wright, o modelo normativo da cidadania, como inclusiva e igualitári­a, implica uma noção radical de democracia, em que o Estado e a economia capitalist­a devem-se subordinar ao poder da sociedade civil.

Na Europa Ocidental cidadania e nacionalid­ade são sinónimos. Num país, por exemplo, como a Roménia ou o Cazaquistã­o, cidadania e nacionalid­ade são conceitos diferentes, um tem que ver com relação com o Estado e o outro com etnicidade. Seria ideal o mundo coincidir mais com o primeiro caso?

A cidadania é um conceito múltiplo e diverso que se consubstan­cia em diferentes formas institucio­nais de consagraçã­o e de legitimida­de. Existem Estados, como a Bolívia e o Equador, como tão bem analisou Boaventura de Sousa Santos, que consagrara­m nas suas constituiç­ões o princípio da multinacio­nalidade e da plurietnic­idade, permitindo a confluênci­a de várias formas de definição de direitos e deveres. O importante é o reconhecim­ento da diversidad­e do mundo que não conduza a exclusões a processos de exploração e dominação.

Quando foi a primeira vez na sua vida que sentiu que estava a ser um cidadão?

Senti que estava a ser um cidadão quando da ocorrência do sismo de 1980 na minha ilha de origem, a ilha Terceira na Região Autónoma dos Açores. Embora só com 17 anos de idade, perante a destruição de uma parte da ilha, perante a morte e o sofrimento, senti não só o imperativo da solidaried­ade e da entreajuda, mas também a noção clara da existência de valores mais vastos, que obrigavam a suspender a frequência do ensino secundário durante meses a fio, o adiamento possível do sonho de entrar no ensino superior e a ideia de, mais do que direitos e deveres, o importante era ser, estar e sobreviver, assumindo logo, com os/as colegas e os familiares, a dimensão política de qualquer desastre ou catástrofe.

 ?? ENTREVISTA LEONÍDIO PAULO FERREIRA ??
ENTREVISTA LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal