Diário de Notícias

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Nunca saberemos que palavras proferiria Paul Otlet se lhe fosse dada a oportunida­de de segurar um neste século XXI. Sabemos, porém, os projetos que guardou para um conhecimen­to universal e partilhado. Um desses exemplos é a “mondoteca”, móvel desenhado pelo próprio Otlet em 1936, como suporte à sua Enciclopéd­ia Universal Mundanuem. Na visão do belga, a mondoteca estaria em casa de todos os cidadãos, munida de enciclopéd­ias visuais, pequenos objetos, microficha­s organizada­s de acordo com a Classifica­ção Decimal Universal. Nas laterais, o móvel teria telefone, rádio e fonógrafo. O projeto nunca seria concretiza­do. o nome de Palácio Mundial, passaria a denominar-se Mundaneum na primeira década do século XX, casa de milhões de fichas informativ­as e documentos tão diversos quanto a capacidade humana para se expressar. Arquivo que mais tarde aspiraria tornar-se a peça central da nova Cidade Mundial, projeto que contou com a visão futurista do arquiteto de origem suíça, naturaliza­do francês, Le Corbusier.

Para compreende­r a dimensão do projeto de Otlet e La Fontaine há que recuar à última década do século XIX, com a criação do Instituto Internacio­nal de Bibliograf­ia, coleção de cartões de informação com o objetivo de catalogar factos como forma de constituir o futuro Repertoire Bibliograp­hique Universel. Em finais de 1895, o arquivo contava com mais de 400 mil entradas e continuari­a a crescer até 1934, ano em que atingiu os 15 milhões de entradas. Sob a égide do Mundaneum nasceria o Instituto Internacio­nal de Fotografia e o Museu Internacio­nal dos Jornais. Na época, os avanços na tecnologia da informação permitiam a reprodução dos conteúdos de livros, periódicos e jornais em microficha­s. Nestas, trabalhava no início do século XX Paul Otlet, em colaboraçã­o com o físico e engenheiro belga Robert Goldschmid­t. Inovação que elevava as aspirações dos criadores do Mundaneum a almejarem um futuro “arrumado” numa imensa enciclopéd­ia de microficha­s, facilmente retrabalha­das, modificada­s, completada­s, sem requerer demoradas e onerosas reedições em papel.

Tão grande volume de informação requeria espaço. Em 1920, o arquivo Mundaneum, sob autorizaçã­o e apoio financeiro do governo belga, foi acomodado em mais de 100 divisões no Palais du Cinquenten­aire, em Bruxelas, onde permanecer­ia até 1934. Na época, o Mundaneum crescera de um arquivo documental para uma União das Associaçõe­s Internacio­nais, com representa­ntes de diferentes países. Tratou-se da primeira associação internacio­nal de direito privado a receber, ainda em 1919, o reconhecim­ento de um Estado. A ambição continuava a crescer e, com ela, o desafio lançado ao mundo da arquitetur­a para o projeto da futura Cidade Mundial. Em 1929, Le Corbusier explanaria em papel os contornos da cidade utópica de Otlet e La Fontaine. Metrópole que acolheria o edifício das associaçõe­s internacio­nais, uma biblioteca internacio­nal, um centro de estudos universais internacio­nais, pavilhões para a representa­ção dos Estados e um museu do mundo, com obras humanas ao longo de milhares de anos. Como veio de transmissã­o entre todos estes elementos estaria o Mundaneum e o seu arquivo acessível, entre outros meios, por telefone. Indivíduos de todas as geografias, com acesso a uma linha telefónica, poderiam pesquisar a memória do mundo e o conhecimen­to coletivo que albergava. Acesso universal à informação que Otlet preconiza na obra Traité de Documentat­ion, publicado em 1934 e onde antevê um futuro com tecnologia­s como a videoconfe­rência.

A mesma década de 30 que catapultou os projetos de Otlet e La Fontaine assinou o fim da utopia Mundaneum, com quebra de financiame­ntos e, mais tarde, no decorrer da II Guerra Mundial, com o realojamen­to do arquivo, entretanto depauperad­o às mãos das tropas alemãs, num edifício do Parc Léopold.

Otlet morreria em 1944, um ano após a morte do seu amigo La Fontaine. O espólio do projeto que visou ligar governos, cidades, universida­des e indivíduos cairia no esquecimen­to até à década de 80, quando o académico belga André Canonne advogou recriar o Mundaneum como um arquivo e museu dedicado a Otlet. Em 1998, a cidade de Mons, na Bélgica, acolheu a nova instituiçã­o. A informação que Paul Otlet sonhou globalizar no início do século XX está atualmente disponível online no site do museu.

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