António Caeiro “Os portugueses de Xangai foram os nossos primeiros retornados”
Salvar, resgatar e fixar a memória dos primeiros retornados portugueses que abandonaram Xangai devido à revolução de Mao Tsé-Tung é o objetivo da mais recente investigação de um jornalista que viveu quase duas décadas na China. História há muito esquecida
“Inconscientemente, sabia que mais tarde ou mais cedo haveria de escrever esta história. O que foi mais difícil foi contactar com esta comunidade, que se dispersou pelo mundo, e também devido à pandemia nos últimos anos, que fechou o acesso aos arquivos e dificultou a comunicação.”
Otítulo desta recuperação da História de Portugal, Os Retornados de Xangai, traz à memória o fim do império verificado com a Revolução de Abril de 1974. O autor, o jornalista António Caeiro (n.1948), explica o nome que dá a um livro em que se fixam centenas de histórias de portugueses que viveram parte das suas vidas numa China que hoje desapareceu e onde, antes de alterar radicalmente a existência destes ‘emigrantes’, eram reconhecidos por serem exímios em profissões que eram necessárias à vida da época. Com a chegada de Mao Tsé-Tung à governação do país gigante que já era e que se reforçou após o sucesso da Grande Marcha, o fim dos anos 40 foram de despedida para uma comunidade nacional que escolhera Xangai, principalmente, para ganhar a vida longe da metrópole. Que muitos nem conheciam, de uma língua que bastantes não falavam, mas que em nada os fazia perder a identidade portuguesa.
Ao pedir-se ao antigo correspondente da agência Lusa na China para descrever o perfil típico do ‘emigrante’ português na China, António Caeiro desenha-o assim: “A esmagadora maioria dos portugueses em Xangai eram empregados das empresas estrangeiras: datilógrafos, contabilistas, intérpretes. Eram considerados bons profissionais, tanto que, quando se contratavam funcionários nessas áreas, dava-se prioridade aos portugueses.” Especifica: “Havia profissões onde os portugueses eram uma mão de obra muito apreciada, como a dos tipógrafos. Em toda a China, na segunda metade do século XIX, lideravam esse setor em grande parte dos jornais de Hong Kong e de Xangai, por exemplo, que eram feitos por gente que tinha aprendido esse ofício em Macau, no Colégio São José.”
No entanto, apesar da distância a que se encontravam das origens, fixavam-se nos novos locais para onde iam trabalhar sem perderem algumas das tradições. Conta o que descobriu nesse aspeto em Xangai: “Não eram uma força económica ou política, mas estavam bem-vistos. Como era uma comunidade enraizada, tinham uma atividade recreativa muito visível e destacavam-se, por exemplo, no desporto: o Clube Lusitano foi campeão nacional de futebol.” O subtítulo do livro, Histórias de Portugueses no Oriente, leva à pergunta fatal: até que ponto a diáspora oriental portuguesa está por contar? Caeiro responde: “A avaliar pelo que descobri sobre Xangai, não devem faltar muitas histórias para contar. Deduzo que ainda, dentro da China, tal como na Malásia, Singapura e toda aquela zona do Extremo Oriente, existam muitas vidas portuguesas por descobrir.”
Onde procurá-las é a questão que se põe. Serão os relatos da imprensa e de outras fontes suficientes ou confundem muitas vezes os factos, como os que terão acontecido com a fuga dos portugueses de Xangai devido ao levantamento de Mao Tsé-Tung em 1949? Para o jornalista não é muito difícil destrinçar a verdade e a mentira históricas: “Existe muito material, pois o nosso Arquivo Histórico Diplomático é riquíssimo, já que durante muito tempo os diplomatas portugueses enviavam regularmente relatórios sobre o que se passava. Há descrições fabulosas sobre a situação em Xangai, textos representativos e bem escritos de um período intenso e conturbado como foi a história da China ao longo do século XX.” É nesse momento de rutura política, social e económica que surgem muitas das histórias recuperadas nestas mais de duzentas páginas d’Os Retornados de Xangai.
Pode-se questionar a opção por este título, visto que a conotação de “retornados” não costuma ser usada por quem deixou a China, mas sim em relação a quem viveu em África. O autor explica: “Os portugueses de Xangai foram os nossos primeiros retornados e a expressão surgiu-me durante uma entrevista ao genealogista Jorge Forjaz. Ao ouvi-la, agarrei essa ideia, que pertence a um tempo em que a palavra nem fazia parte do nosso vocabulário. Mesmo que quando começam a deixar Xangai, em 1949, de forma maciça saíssem como refugiados para Macau, enquanto aguardavam um visto para outros países, como EUA, Brasil ou Austrália, e raramente para o país de origem. Afinal, muitos deles estavam há gerações fora de Portugal.”
Após a leitura deste volume fica a pergunta: é obrigatório a um jornalista português procurar as histórias dos seus conterrâneos que estiveram antes de si no local para onde foi trabalhar? “Não sei se é obrigatório, mas instintivo sim. Quando se é correspondente, uma das obrigações é noticiar a presença portuguesa nesses países. Enquanto estava em Pequim, acompanhei a descoberta de Fernando Pessoa – que tem um grande prestígio no país –, as sessões de José Saramago, não ignorando também os portugueses que se tornaram muito reconhecidos devido ao futebol, como os jogadores – Figo era muito popular – e treinadores que para lá foram trabalhar. Nunca deixei de me inteirar da parte histórica também, porque a presença portuguesa é das mais antigas, como prova a fama de Vasco da Gama por lá”, recorda.
Pelo livro vão passando inúmeras investigações e depoimentos, como o do arquiteto António Jorge da Silva, que publicou um livro para preservar a memória de “uma comunidade cuja identidade corre o risco de se desvanecer”, os pequenos lampejos da Mocidade Portuguesa de Xangai que o próprio Salazar erradicou face às iniciativas pró-Reich do cônsul Ribeiro de Melo, a “visita” do cruzador República face à desestabilização política de Xangai. Ou um dos relatos que Caeiro mais destaca entre as dezenas que recolheu: “Houve várias histórias que me surpreenderam bastante e imagino que isso se vá refletir nos leitores, desde logo a mais espetacular é a do pai do antigo ministro da Educação Roberto Carneiro, Artur Carneiro, que usava como nome artístico Art Carneiro e que foi um dos pioneiros do jazz em Portugal após ter iniciado a carreira em Xangai. Tocou em algumas das melhores orquestras de jazz de Xangai, que nos anos 30 era a capital asiática deste género. Depois tocou em Hong Kong, Macau e outros locais, até vir com a família, em 1947, para Portugal. Onde continuou a sua paixão musical.”
António Caeiro observou a China,
principalmente a partir de Pequim, durante quase duas décadas. Quando partiu como jornalista da agência Lusa [ainda se chamava ANOP], não previa que a estada fosse prolongada por tanto tempo nem que o marcasse tanto, como esclarece: “De maneira nenhuma. Ia animado por uma grande curiosidade, porque a China para os portugueses é no fim do mundo, mas sem ideia do que iria encontrar. Pouco tempo depois de ter desembarcado, senti que estava num país trepidante, cheio de vida e com uma sofreguidão de transformação como não sentira em outros lugares onde tinha estado.” Dessa vivência já surgiram três livros: Pela China Dentro, Novas Coisas da China e Peregrinação Vermelha, publicados desde 2004. Anos após o regresso a Portugal, mantém o espanto perante a mudança que observou naquele país, como revela: “O espanto mantém-se, porque a China continua a ser – até para os próprios – um país surpreendente, onde as coisas acontecem a um ritmo vertiginoso e sem precedentes no planeta; que está a entrar pelo mundo dentro e ao mesmo tempo o contrário, com o mundo a entrar dentro da China.”
Termina o livro com uma frase do primeiro cônsul de Portugal que reabriu a representação diplomática de Xangai em 2006, que diz: “Nunca me senti um estranho.” Teve o mesmo sentimento ou o conhecimento profundo da China ensinou-lhe outra verdade?
A China ainda hoje é surpreendente para mim – e quando lá cheguei, em 1991, ainda mais –, porque foi uma caixa de surpresas, por ser uma civilização antiga e ao mesmo tempo muito diversificada. Essa referência do primeiro cônsul da nova era, já do século XXI, João Maria Cabral, compreende-se porque Xangai é uma cidade mais ocidental e mais familiar do que Pequim.
Reproduz a sentença do escritor Yan Lianke, que diz: “A China atravessa de forma precipitada uma série de marcos económicos e de desenvolvimento que a Europa e os EUA levaram mais de dois séculos a alcançar.” Esta evolução é incompreensível para o Ocidente? Mais do que incompreensível, é surpreendente, dado o ritmo das mudanças que ocorreram, o que se pode dizer que representa várias revoluções no espaço de duas gerações. O milagre económico chinês que fez de um país pobre a grande fábrica do mundo é inédito na história da humanidade e os próprios têm dificuldade em acompanhar o passo das mudanças que estão a protagonizar. Adaptam-se ou ficam chocados com estas mudanças? Adaptam-se, porque estão envolvidos nessas mudanças, mas os efeitos psicológicos e sociais são enormes. De quase 90% da população a viver no campo há menos
de um século, hoje estão mais de 60% nas cidades, para onde todos os anos afluem cerca de 12 milhões. É mais do que um Portugal inteiro.
Franco Nogueira dizia que o regime de Mao Tsé-Tung era mais tradicionalista do que o de Taiwan de Chiang Kai-shek. Concorda?
Fala disso num livro dos anos 50, A Luta pelo Oriente. Era um observador muito heterodoxo da realidade chinesa, casado com a filha de um diplomata chinês, e a sua opinião é muito certeira. Via no regime vermelho uma certa continuidade da antiga linha imperial, ressuscitando até muitos rituais antigos, enquanto Chiang Kai-shek se converteu ao cristianismo
e privilegiou um sistema político com conotações mais ocidentais. Quando nos confrontamos com o ideal de Xi Jiping e o modo como ‘gere’ a China, Mao Tsé-Tung torna-se definitivamente um capítulo ancestral da história do país? Há alguma continuidade entre Mao Tsé-Tung e a liderança de Xi Jiping. Ambos são líderes muito fortes, com um culto de personalidade parecido, uma iconografia semelhante e com constantes citações nos cabeçalhos dos jornais, ou as edições das “obras completas” das suas intervenções públicas – fala-se mesmo de uma liderança neomaoísta. Nunca houve, desde a morte de Mao, um líder tão forte como o atual presidente, que não se dilui na cúpula do Partido Comunista, como os antecessores. A noção de império português – nem sempre bem entendida – não pode ser ignorada com a leitura deste livro?
Não tinha pensado nesse ângulo quando investiguei a história da antiga comunidade portuguesa de Xangai, mas dei-me conta de que fora da metrópole não existia a visão de um império. Fora de Portugal, a minha geração não sabia o que se passava em Angola ou Moçambique, e então no Extremo Oriente muito menos. Os próprios portugueses que habitavam esse império, os das margens como era com Xangai, estavam entregues a si próprios. As notícias sobre esta comunidade, bem como os estudos académicos, são muito raras. Sublinha que “havia cerca de 50 mil estrangeiros em Xangai em 1930. Estavam quase todos de passagem. Os portugueses não”. O que os motivava a ficarem? Quase toda a comunidade portuguesa de Xangai era oriunda de Macau, onde estava há várias gerações, desde o século XVII. Só que Macau era muito pequeno, e, depois da Guerra do Ópio, Xangai emerge como a grande força económica da região e rapidamente se torna o principal porto e berço da modernização da China. As oportunidades eram enormes e os ingleses viram nos portugueses euro-asiáticos os intermediários ideais para desenvolverem as suas empresas, porque falavam várias línguas e conheciam a cultura local. Referir a China até há duas décadas nunca excluía a experiência portuguesa em Macau, um paralelo que desapareceu num instante. Porquê este esquecimento?
A relação com Macau era um pouco estranha: a bandeira portuguesa flutuava no território, mas sabia-se pouco sobre ele, a não ser o caso dos que para lá tinham ido. Além disso, durante muito tempo era notícia por más razões, escândalos que ensombravam aquela distante e exótica colónia portuguesa. Com a integração na China, esse distanciamento acentuou-se. A experiência profissional na China facilitou a sua investigação? Sem dúvida que o ter vivido 19 anos na China me permitiu “colecionar” notas desta presença portuguesa em Xangai. Inconscientemente, sabia que mais tarde ou mais cedo haveria de escrever esta história. O que foi mais difícil foi contactar com esta comunidade, que se dispersou pelo mundo, e também devido à pandemia nos últimos anos, que fechou o acesso aos arquivos e dificultou muito as comunicações.
Quando hoje se assiste à invasão da Ucrânia pela Rússia e ao comportamento da China, muitos consideram ser um ensaio para uma futura ocupação de Taiwan. Acredita nessa tese?
Tem sido falada, mas tenho a sensação de que a questão de Taiwan é uma espécie de arma de arremesso que de vez em quando se atira contra o governo chinês. O passaporte dos habitantes de Taiwan tem escrito na capa República da China – falta o Popular -, portanto sempre foram e são oficialmente o que resta do governo da antiga República da China, que foi derrotada na guerra civil e sobre a qual, por vicissitudes históricas, ainda não se verificou uma reunificação. Quer os EUA quer a maioria dos países – só 14 é que não – reconhecem que só há uma China e que Taiwan faz parte dela. No entanto, a maioria da população de Taiwan quer o atual status quo, sobretudo depois da crise recente em Hong Kong, que os assustou. As pessoas receiam o poder de Pequim mas não querem a independência porque acham que esta levaria à guerra.
Há uma afirmação neste livro impossível de ignorar: “’Sob a bandeira vermelha’, houve duas coisas que todos os chineses foram ensinados a não esquecer: a luta de classes e a ‘humilhação nacional’. A primeira foi rapidamente esquecida, a memória da segunda continua muito viva.” Esta é a melhor definição da China com que o mundo se confronta atualmente? É um traço muito relevante da personalidade da alma chinesa atual. Aquilo a que chamam o século de humilhação nacional, iniciado com a Guerra do Ópio, em 1839, e que foi até 1949, quando a China teve de indemnizar os comerciantes ingleses pelo ópio que lhes foi apreendido. Esse período é uma das fontes de legitimidade que o Partido Comunista Chinês procura cultivar e realçar – que não está no poder por ter ganho eleições –, por viverem agora um milagre económico que lhes restituiu o respeito internacional. Hoje, a China olha para a NATO como um bloco agressivo e ao serviço dos Estados Unidos, e o que querem é um mundo bipolar e não comandado por um único país, e veem certas manobras internacionais como uma tentativa de conter a China.
“Há alguma continuidade entre Mao Tsé-Tung e a liderança de Xi Jiping. Ambos são líderes muito fortes, com um culto de personalidade parecido, uma iconografia semelhante.”