Emergência de saúde pública prevê ‘via rápida’ para reclamação judicial LEI
Governo divulgou proposta para um novo quadro jurídico nacional que regule as medidas a tomar em situações de pandemia. Isolamento e quarentena terão recurso rápido para tribunal.
É um exercício em cima da linha para tentar dar enquadramento legal a restrições como as que foram aplicadas durante a pandemia, sem violar os termos impostos pela Constituição. O governo enviou ontem para a Assembleia da República o anteprojeto de Lei de Proteção em Emergência de Saúde Pública, um documento que tenta construir um novo quadro jurídico para dar resposta a situações como a que se viveu com a covid-19, sem ter de acionar o estado de emergência.
A traços largos, o texto elaborado pela comissão técnica nomeada pelo governo, em junho de 2021, dá enquadramento jurídico a medidas restritivas (da restrição de direitos individuais como o isolamento ou a quarentena, a restrições coletivas como cercas sanitárias, limites à circulação, proibição de ajuntamentos ou recolher obrigatório), chamando a Assembleia da República à decisão (embora só numa terceira fase) ou criando uma via processual própria para os visados poderem reclamar em tribunal. Esta é, aliás, uma das novidades do texto: quem considerar os seus direitos pessoais e de personalidade lesados pode requerer ao tribunal a apreciação da legalidade da medida, através de meio postal ou eletrónico e sem necessidade de constituir advogado. Não havendo motivo para indeferimento, o tribunal decide por despacho em cinco dias, ou designa dia e hora para uma audiência, a realizar nos cinco dias posteriores.
O quadro jurídico previsto no anteprojeto abarca três momentos: uma fase inicial, a fase crítica da emergência, e o pós. Num primeiro momento caberá ao governo declarar a situação de “emergência de saúde pública”, definida como uma “ocorrência extraordinária” ou “ameaça iminente” de uma “doença ou condição de saúde causada por bioterrorismo, epidemia ou pandemia, agente químico, biológico ou infeccioso ou altamente fatal, biotoxina, fenómenos físicos, nomeadamente radiológicos ou nucleares, ou ocorrência ambiental”.
Uma vez feita esta declaração, é nomeado um “Conselho Científico” (ver caixa ao lado), que terá obrigatoriamente que se pronunciar caso o governo decida avançar para o estádio seguinte: a declaração da “fase crítica da emergência”. Esta declaração volta a ser da responsabilidade do Executivo (mas sujeita à aprovação ou veto do Presidente da República), com uma extensão máxima de 30 dias. A partir daqui entra em campo a Assembleia da República, órgão ao qual caberá decidir a prorrogação desta fase de emergência, fixando a duração e podendo alterar as medidas a aplicar.
Este é, aliás, um dos pontos sublinhados no preâmbulo do anteprojeto de lei, em que se invoca o parlamento como “fonte de legitimidade” – “num contexto de uma emergência de saúde pública, qualquer que seja a sua causa, é fundamental salvaguardar um ativo papel do parlamento durante todo o período em que for estritamente necessário a adoção de medidas intensamente restritivas dos direitos e das liberdades”.
Dois anos de prisão ou multa até 240 dias
O isolamento (de alguém infetado) e a quarentena (contactos de risco, por exemplo) são, aliás, um dos principais focos de preocupação do anteprojeto, dado serem também um dos pontos mais sensíveis em termos de adequação à Constituição. Ambas as medidas têm uma duração máxima de 14 dias (prorrogáveis no caso de isolamento, mas não de quarentena), implicando obrigatoriamente uma justificação escrita por parte da autoridade de Saúde. Nos casos de quarentena o documento admite também que as pessoas possam sair do domicílio, dentro de uma determinada janela horária.
Garantias suficientes, na perspetiva dos autores, para que o isolamento e a quarentena configurem “uma medida restritiva da liberdade” e “não uma medida privativa da liberdade”, o que as deixará fora da alçada da Constituição. No artigo 27.º, a Lei Fundamental impõe que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”. O Tribunal Constitucional já se pronunciou pela inconstitucionalidade de casos de quarentena.
Em termos de responsabilidade criminal, o anteprojeto prevê pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias para quem se ausente do domicílio ou do local de cumprimento do isolamento ou da quarentena “fora das situações legalmente previstas ou especificamente autorizadas pelas autoridades competentes”.