Hoje é o Dia Internacional do Enfermeiro
Sou enfermeiro! Sim, sou um orgulhoso membro do maior grupo profissional da saúde! Porque desenvolvi a maior parte da minha atividade profissional na carreira académica assumo-me também como um académico, ou seja, alguém que possui formação avançada na sua área, investiga e lidera equipas, ensina de acordo com a sua perícia e com a investigação que produz, participa de forma plena na vida académica e desenvolve intervenção com impacto na comunidade.
Nestas circunstâncias, tenho particular responsabilidade na compreensão e desenvolvimento da disciplina e profissão de enfermagem. É por tais razões que constato que os enfermeiros empreenderam, nos últimos 30 anos, um processo de desenvolvimento ímpar: desenvolveram novas competências concetuais, cognitivas e clínicas, almejaram graus académicos avançados, desenvolvem investigação reconhecida, nacional e internacionalmente, como excelente, intervêm clinicamente em todos os contextos, estando empiricamente demonstrado o contributo dessa intervenção para os resultados em saúde, participam na vida social e comunitária e, em tempos de crise, emigraram e ombrearam com os melhores nas mais diferentes latitudes.
Apesar disso, continuo a constatar que a população portuguesa, aquela que nos proporcionou este desenvolvimento, é a que menos usufrui do nosso atual potencial, da nossa capacidade de contribuir para a sua saúde e bem-estar. São, com certeza, múltiplas as razões que poderão explicar tal fenómeno, mas todas elas são incompreensíveis e até paradoxais: como pode um país investir tanto no desenvolvimento de um grupo profissional e depois não criar as condições que permitem usufruir desse investimento? Como pode deixar que isso aconteça com prejuízo da saúde e bem-estar das pessoas?
Por tais razões e em prol de maiores níveis de saúde e bem-estar da população, entendo que a profissão de enfermagem deve propor uma renovação do seu contrato social. Os enfermeiros têm competências para serem muito mais úteis e darem muito mais à sociedade, tal como o demonstram sempre que têm oportunidade.
Tal é particularmente pertinente se considerarmos o atual perfil epidemiológico da população. Estamos perante uma sociedade envelhecida, onde predomina a multimorbilidade crónica e dependência. Para, nesta circunstância, se viver com bem-estar, é necessário desenvolver uma abordagem centrada no autocuidado e sustentada na literacia, assumindo como foco e simultaneamente como coprodutores de cuidados, a pessoa e o seu contexto sociofamiliar, e como local privilegiado de prestação de cuidados a casa das pessoas. É necessário desenvolver modelos de cuidados congruentes com isso e que garantam a integração e a continuidade de cuidados, e dentro desta, a continuidade relacional.
Curiosamente, mesmo na situação extraordinária que temos vivido – a pandemia –, esta perspetiva faz todo o sentido. Para lá da enorme pressão sobre os hospitais e dentro destes, sobre as UCI, tivemos, a montante, uma clamorosa carência de resposta da saúde pública e a jusante mais de 95% de pessoas infetadas que permaneceram em suas casas e com evidente carência de um modelo de acompanhamento que lhes proporcionasse a resposta adequada.
Em suma, é por demais sabido que precisamos de adequar as respostas às atuais características e necessidades da população. Precisamos, por isso, de mudança com inovação. Os enfermeiros devem colocar-se, desde já, na linha frente para contribuírem para a mesma. Devem, por isso, propor um novo pacto à sociedade portuguesa, que lhes permita pôr ao serviço das pessoas a totalidade das suas competências e, assim, contribuir para melhores níveis de saúde e bem-estar.
Deixo apenas alguns desafios, sendo que o contexto de todos eles é o enquadramento demográfico e epidemiológico atrás referido e a perspetiva da economia do bem-estar. Desta, destaco particularmente o seu terceiro objetivo: apoiar pessoas e comunidades saudáveis e resilientes de modo a proporcionar-lhes condições de dignidade, um sentido de ligação e pertença e acesso aos meios que apoiam as suas necessidades humanas básicas, incluindo o apoio ao bem-estar físico, psicológico, emocional, social e espiritual.
Neste contexto, proponho que os enfermeiros, com base no seu dever moral de defesa dos direitos das pessoas, se assumam como o garante da equidade no acesso aos cuidados de saúde, tal como a Constituição o define. Que para isso assumam a liderança de mudanças organizacionais congruentes com a centralização dos cuidados na pessoa e com a sua integração e continuidade; a liderança no desenvolvimento de novos modelos de cuidados nomeadamente os que privilegiam a domiciliação; e que assumam e “imponham” o autocuidado e a literacia como pilares essenciais de todos os processos de cuidados.
Proponho que, através dos órgãos próprios, apresentem ao poder político propostas que contribuam para a sustentabilidade dos serviços públicos de saúde. As mesmas devem assumir que os problemas de saúde são complexos e como tal convocam todos os saberes para a sua resolução. Tal pressupõe que os diferentes profissionais tenham uma relação paritária, que aproveite integralmente as competências instaladas e que seja focada na procura das melhores respostas às necessidades das pessoas. Para isso devem desenvolver-se estratégias de partilha e combinação de funções, compatíveis com as melhores práticas internacionais. Proponho ainda que, através de uma estreita articulação com a academia, se desenvolvam indicadores de resultados em saúde.
No dealbar da era da transformação digital os enfermeiros devem exigir que as Tecnologias da Informação e Comunicação se desenvolvam em função das pessoas e dos modelos de cuidados e que contribuam efetivamente para melhores decisões em saúde (individual e coletiva).
Proponho também que se promova uma estratégia ativa de valorização social dos enfermeiros enquanto profissão essencial à saúde e bem-estar das pessoas. Como todos os estudos demonstram, a enfermagem é uma das profissões em que as pessoas mais confiam. Este é um capital de enorme importância! Falta o Estado reconhecer-lhes esse valor!
As Escolas (universitárias ou politécnicas) também têm enormes desafios para responder. Assim, proponho que criem uma comunidade aprendente, que envolva a academia e os contextos clínicos, e que se comprometa a desenvolver a investigação necessária à criação de novos modelos de cuidados; que desenvolvam uma estratégia de proximidade entre os contextos clínicos e a academia promotora da miscigenação dos processos de investigação e de aprendizagem, que garantam formação e desenvolvimento ao longo da vida; e que afirmem a sua autonomia desenvolvendo novos modelos de formação comprometidos com o desenvolvimento da disciplina e da profissão ao serviço das necessidades das pessoas e da sociedade.
Proponho por fim que os órgãos profissionais competentes, mas também cada enfermeiro em cada gesto, promovam uma classe profissional prestigiada, com uma prática regida por rigorosos padrões éticos e deontológicos, norteada pelo respeito pela dignidade das pessoas e assente numa relação de confiança; sustentada na evidência empírica e ao serviço das pessoas; assertiva na sua postura; preocupada com os que mais precisam e defensora dos que não têm voz.
Hoje, no Dia Internacional do Enfermeiro celebro orgulhosamente a Enfermagem como disciplina e profissão essencial à saúde e bem-estar de todas as pessoas em qualquer contexto e momento do ciclo de vida!
Os enfermeiros têm competências para serem muito mais úteis e darem muito mais à sociedade, tal como o demonstram sempre que têm oportunidade.