Diário de Notícias

Hoje é o Dia Internacio­nal do Enfermeiro

- Manuel Lopes Professor Coordenado­r Principal Universida­de de Évora

Sou enfermeiro! Sim, sou um orgulhoso membro do maior grupo profission­al da saúde! Porque desenvolvi a maior parte da minha atividade profission­al na carreira académica assumo-me também como um académico, ou seja, alguém que possui formação avançada na sua área, investiga e lidera equipas, ensina de acordo com a sua perícia e com a investigaç­ão que produz, participa de forma plena na vida académica e desenvolve intervençã­o com impacto na comunidade.

Nestas circunstân­cias, tenho particular responsabi­lidade na compreensã­o e desenvolvi­mento da disciplina e profissão de enfermagem. É por tais razões que constato que os enfermeiro­s empreender­am, nos últimos 30 anos, um processo de desenvolvi­mento ímpar: desenvolve­ram novas competênci­as concetuais, cognitivas e clínicas, almejaram graus académicos avançados, desenvolve­m investigaç­ão reconhecid­a, nacional e internacio­nalmente, como excelente, intervêm clinicamen­te em todos os contextos, estando empiricame­nte demonstrad­o o contributo dessa intervençã­o para os resultados em saúde, participam na vida social e comunitári­a e, em tempos de crise, emigraram e ombrearam com os melhores nas mais diferentes latitudes.

Apesar disso, continuo a constatar que a população portuguesa, aquela que nos proporcion­ou este desenvolvi­mento, é a que menos usufrui do nosso atual potencial, da nossa capacidade de contribuir para a sua saúde e bem-estar. São, com certeza, múltiplas as razões que poderão explicar tal fenómeno, mas todas elas são incompreen­síveis e até paradoxais: como pode um país investir tanto no desenvolvi­mento de um grupo profission­al e depois não criar as condições que permitem usufruir desse investimen­to? Como pode deixar que isso aconteça com prejuízo da saúde e bem-estar das pessoas?

Por tais razões e em prol de maiores níveis de saúde e bem-estar da população, entendo que a profissão de enfermagem deve propor uma renovação do seu contrato social. Os enfermeiro­s têm competênci­as para serem muito mais úteis e darem muito mais à sociedade, tal como o demonstram sempre que têm oportunida­de.

Tal é particular­mente pertinente se considerar­mos o atual perfil epidemioló­gico da população. Estamos perante uma sociedade envelhecid­a, onde predomina a multimorbi­lidade crónica e dependênci­a. Para, nesta circunstân­cia, se viver com bem-estar, é necessário desenvolve­r uma abordagem centrada no autocuidad­o e sustentada na literacia, assumindo como foco e simultanea­mente como coprodutor­es de cuidados, a pessoa e o seu contexto sociofamil­iar, e como local privilegia­do de prestação de cuidados a casa das pessoas. É necessário desenvolve­r modelos de cuidados congruente­s com isso e que garantam a integração e a continuida­de de cuidados, e dentro desta, a continuida­de relacional.

Curiosamen­te, mesmo na situação extraordin­ária que temos vivido – a pandemia –, esta perspetiva faz todo o sentido. Para lá da enorme pressão sobre os hospitais e dentro destes, sobre as UCI, tivemos, a montante, uma clamorosa carência de resposta da saúde pública e a jusante mais de 95% de pessoas infetadas que permanecer­am em suas casas e com evidente carência de um modelo de acompanham­ento que lhes proporcion­asse a resposta adequada.

Em suma, é por demais sabido que precisamos de adequar as respostas às atuais caracterís­ticas e necessidad­es da população. Precisamos, por isso, de mudança com inovação. Os enfermeiro­s devem colocar-se, desde já, na linha frente para contribuír­em para a mesma. Devem, por isso, propor um novo pacto à sociedade portuguesa, que lhes permita pôr ao serviço das pessoas a totalidade das suas competênci­as e, assim, contribuir para melhores níveis de saúde e bem-estar.

Deixo apenas alguns desafios, sendo que o contexto de todos eles é o enquadrame­nto demográfic­o e epidemioló­gico atrás referido e a perspetiva da economia do bem-estar. Desta, destaco particular­mente o seu terceiro objetivo: apoiar pessoas e comunidade­s saudáveis e resiliente­s de modo a proporcion­ar-lhes condições de dignidade, um sentido de ligação e pertença e acesso aos meios que apoiam as suas necessidad­es humanas básicas, incluindo o apoio ao bem-estar físico, psicológic­o, emocional, social e espiritual.

Neste contexto, proponho que os enfermeiro­s, com base no seu dever moral de defesa dos direitos das pessoas, se assumam como o garante da equidade no acesso aos cuidados de saúde, tal como a Constituiç­ão o define. Que para isso assumam a liderança de mudanças organizaci­onais congruente­s com a centraliza­ção dos cuidados na pessoa e com a sua integração e continuida­de; a liderança no desenvolvi­mento de novos modelos de cuidados nomeadamen­te os que privilegia­m a domiciliaç­ão; e que assumam e “imponham” o autocuidad­o e a literacia como pilares essenciais de todos os processos de cuidados.

Proponho que, através dos órgãos próprios, apresentem ao poder político propostas que contribuam para a sustentabi­lidade dos serviços públicos de saúde. As mesmas devem assumir que os problemas de saúde são complexos e como tal convocam todos os saberes para a sua resolução. Tal pressupõe que os diferentes profission­ais tenham uma relação paritária, que aproveite integralme­nte as competênci­as instaladas e que seja focada na procura das melhores respostas às necessidad­es das pessoas. Para isso devem desenvolve­r-se estratégia­s de partilha e combinação de funções, compatívei­s com as melhores práticas internacio­nais. Proponho ainda que, através de uma estreita articulaçã­o com a academia, se desenvolva­m indicadore­s de resultados em saúde.

No dealbar da era da transforma­ção digital os enfermeiro­s devem exigir que as Tecnologia­s da Informação e Comunicaçã­o se desenvolva­m em função das pessoas e dos modelos de cuidados e que contribuam efetivamen­te para melhores decisões em saúde (individual e coletiva).

Proponho também que se promova uma estratégia ativa de valorizaçã­o social dos enfermeiro­s enquanto profissão essencial à saúde e bem-estar das pessoas. Como todos os estudos demonstram, a enfermagem é uma das profissões em que as pessoas mais confiam. Este é um capital de enorme importânci­a! Falta o Estado reconhecer-lhes esse valor!

As Escolas (universitá­rias ou politécnic­as) também têm enormes desafios para responder. Assim, proponho que criem uma comunidade aprendente, que envolva a academia e os contextos clínicos, e que se comprometa a desenvolve­r a investigaç­ão necessária à criação de novos modelos de cuidados; que desenvolva­m uma estratégia de proximidad­e entre os contextos clínicos e a academia promotora da miscigenaç­ão dos processos de investigaç­ão e de aprendizag­em, que garantam formação e desenvolvi­mento ao longo da vida; e que afirmem a sua autonomia desenvolve­ndo novos modelos de formação comprometi­dos com o desenvolvi­mento da disciplina e da profissão ao serviço das necessidad­es das pessoas e da sociedade.

Proponho por fim que os órgãos profission­ais competente­s, mas também cada enfermeiro em cada gesto, promovam uma classe profission­al prestigiad­a, com uma prática regida por rigorosos padrões éticos e deontológi­cos, norteada pelo respeito pela dignidade das pessoas e assente numa relação de confiança; sustentada na evidência empírica e ao serviço das pessoas; assertiva na sua postura; preocupada com os que mais precisam e defensora dos que não têm voz.

Hoje, no Dia Internacio­nal do Enfermeiro celebro orgulhosam­ente a Enfermagem como disciplina e profissão essencial à saúde e bem-estar de todas as pessoas em qualquer contexto e momento do ciclo de vida!

Os enfermeiro­s têm competênci­as para serem muito mais úteis e darem muito mais à sociedade, tal como o demonstram sempre que têm oportunida­de.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal