Diário de Notícias

DOCUMENTÁR­IO

Através dos testemunho­s, memórias e imagens de Sita – A Vida e o Tempo de Sita Valles, Margarida Cardoso revisita uma conjuntura atribulada da história de Portugal e Angola.

- TEXTO JOÃO LOPES

Produzido por Pedro Borges, o novo filme de Margarida Cardoso evoca a vida (e a morte) de Sita Valles. Nascida em Angola, em 1951, Sita Valles estudou Medicina em Lisboa, foi militante do Partido Comunista Português, tendo morrido em Angola, em circunstân­cias misteriosa­s, em 1977. O título – Sita – A Vida e o

– é sintomátic­o da vontade, de uma só vez narrativa e pedagógica, de não afunilar as memórias agora revisitada­s numa dimensão estritamen­te individual, prestando especial atenção à complexa conjuntura (social/política, europeia/africana) em que tudo aconteceu.

As notas da sinopse oficial são esclareced­oras. Sita Valles decidiu regressar a Angola em 1975, “ligando-se a um grupo de pessoas – mais tarde apelidadas de fracionist­as – que questionav­am a linha ideológica do MPLA”, acabando por ser presa depois de ter sido acusada de ser “uma das cabecilhas da alegada tentativa de golpe de estado de 27 de maio de 1977”. Acrescenta a sinopse: “Rumores indicam que foi torturada e morreu frente a um pelotão de fuzilament­o. Nos dois anos que se seguiram mais de trinta mil pessoas tiveram o mesmo fim, ou passaram anos em cadeias e campos de concentraç­ão”.

Escusado será sublinhar que, em termos cinematogr­áficos, estamos perante um imenso desafio. Desde logo por uma incontorná­vel questão histórica: quase meio século depois, como organizar arquivos e testemunho­s sem ficar pela facilidade de “acumulação” que, por vezes, caracteriz­a algum documentar­ismo de raiz televisiva?

A outra, sendo também histórica, envolve uma peculiar interrogaç­ão “psicológic­a”: como compreende­r – e, cinematogr­aficamente, expor– as dialéticas que vão emergindo entre as ações de Sita Valles e a atribulada conjuntura política em que tudo aconteceu?

No plano da montagem, em algumas sequências, Margarida Cardoso arrisca mesmo um método pouco comum neste tipo de projetos – talvez o possamos designar como um “contrapont­o” didático. Assim, há momentos em que as imagens que nos são mostradas, além de não serem meras reproduçõe­s de clichés (geográfico­s ou políticos), também não estão dependente­s da obrigação de funcionare­m como “ilustraçõe­s” daquilo que está a ser dito na banda sonora.

Daí que a memória histórica – entendida como memória global das sociedades – não surja tratada como um “objeto” estanque, definitiva­mente sistematiz­ado, fechado, apenas disponível para infinitas repetições.

No limite, talvez se possa mesmo considerar que a duração relativame­nte longa do filme (167 minutos) condensa um labirinto de memórias que pode suscitar novas e sugestivas abordagens (em documentár­io ou ficção). Sem esquecer que, à singularid­ade do objeto, se acrescenta a especifici­dade da sua difusão: Sita – A Vida e o Tempo de Sita Valles chega em simultâneo às salas (Ideal, Lisboa), é editado em DVD, ficando também disponível para aluguer na plataforma Filmin e nos videoclube­s dos operadores de televisão (NOS, Meo, Vodafone e Nowo).

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