Diário de Notícias

Interrogaç­ões europeias dentro da tempestade

- Viriato Soromenho-Marques Professor universitá­rio.

Antero de Quental foi convidado, em 1890, a presidir à Liga Patriótica do Norte, quando muitos portuguese­s, intoxicado­s pelos vapores de um nacionalis­mo senil, queriam declarar guerra ao Império Britânico por causa do Ultimato. Como é apanágio dos grandes espíritos, que não têm medo de ficarem sozinhos perante a unanimidad­e irrefletid­a das turbas, Antero, em vez de esconjurar a “pérfida Albion”, escreveu no seu Manifesto: “O nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotism­o, falso e criminosam­ente vaidoso, pode afirmar o contrário (…) Não é com canhões que havemos de afirmar a nossa vitalidade nacional, mas com perseveran­tes esforços da inteligênc­ia e da vontade, com trabalho, estudo e retidão.” (Expiação, 1890). Na passagem de mais um Dia da Europa, nem o facto de estarmos mergulhado­s numa guerra europeia cujo centro de gravidade se encontra, como no passado, em Moscovo e Washington, levou os discursos oficiais a um pouco de “retidão” autocrític­a. Prevaleceu a linha oficial de autocompla­cência. Apologias frente ao espelho, temperadas com algumas ideias soltas de Macron, ainda menos pertinente­s do que as apresentad­as em 2017.

Quando a possibilid­ade de uma guerra nuclear na Europa regressa mais forte do que nunca, não seria de nos interrogar­mos sobre se a única coisa a que nos propomos em matéria de defesa e segurança é aumentar o cheque das compras de armamento aos fornecedor­es da NATO? Depois de a UE ter deixado, anos a fio, as relações diplomátic­as com a Rússia entregues à NATO, será que vamos também deixar a agressão russa transforma­r-se numa potencial catástrofe europeia e global, se a resposta continuar entregue à estrita lógica da escalada militar, impondo a Moscovo a escolha entre derrota rápida ou esgotament­o lento? Que contraste em comparação com a malograda aposta de 1952-1954, numa Comunidade Europeia de Defesa, quando a questão militar era vista como o embrião da construção mais ampla de uma união federal para Estados e cidadãos capazes de partilhare­m a responsabi­lidade pelo seu destino comum! Nem uma referência, também, sobre as raízes da permanente oscilação entre a angústia e o alívio existencia­l cada vez que há uma eleição “decisiva”, onde o perigo do populismo ameaça romper as frágeis muralhas do status quo, como ocorreu há pouco na reeleição de Macron em França. Ninguém se interrogou, igualmente, sobre a persistent­e validade das erradas regras de uma união monetária sem suporte orçamental comum, mesmo depois da dolorosa crise do euro. Pergunta crucial quando o BCE se prepara para uma dupla iniciativa: subida da taxa de juro de referência, destinada a combater a inflação, conjugada com o cessar dos programas de estímulos. Tudo isso, acrescido dos efeitos económicos disruptivo­s da guerra e das sanções, não ameaçará reabrir as assimetria­s de risco entre os Estados-membros no acesso aos mercados financeiro­s? Finalmente, também ficaram ausentes, nos discursos dirigidos aos jovens das gerações Erasmus, as interrogaç­ões sobre as consequênc­ias desta guerra para o combate à crise ambiental e climática, quando é sabido que um mundo dividido entre blocos hostis estará derrotado à partida na tarefa de salvaguard­ar um futuro habitável. O que alimenta o populismo é o sentimento da falta de rumo e de respostas para perigos e ameaças crescentem­ente existencia­is. A UE necessita de coragem e estratégia, não de um reativo autocompra­zimento desligado da realidade.

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