Diário de Notícias

Holodomor estalinist­a e a chantagem da fome

- Jornalista António Capinha

É com os cereais da Ucrânia que as Nações Unidas matam a fome a cerca de 155 milhões de seres humanos, que habitam os destinos pobres de África e do Médio Oriente.

Não é nova a cobiça de Moscovo pelas terras negras e férteis da Ucrânia do sul, à volta das cidades de Kherson, Zaporizhzh­ia e Odessa.

É lá que é plantada uma quantidade consideráv­el dos cereais ucranianos, a quarta maior produção mundial de milho e a terceira de trigo.

Cereais cobiçados, mas cereais necessário­s para matarem a fome a uma parte consideráv­el da população mundial. Caso estes cereais apodreçam nos silos ucranianos, 250 milhões de seres humanos ficam em risco de fome e 440 milhões deixam de poder comprar os produtos feitos à base de cereais de que necessitam para o essencial da sua alimentaçã­o.

A cobiça pelos cereais ucranianos vem já dos longínquos anos 30 do século passado, do tempo de Estaline. É aquilo a que os ucranianos chamaram de holodomor ou o “deixar morrer à fome”. Quase cinco milhões de cidadãos de etnia ucraniana morreram à fome nos anos de 1931 a 1933. A causa foi a bárbara política do ditador soviético Estaline, que obrigou os agricultor­es ucranianos, através de uma “requisição compulsóri­a”, a entregarem ao Estado soviético a maior parte da produção de cereais ucranianos. Três anos que custaram cinco milhões de vidas de ucranianos que pereceram à fome.

Não é pois nova a questão dos cereais na Ucrânia!

Ucrânia e Rússia, os celeiros do mundo, são responsáve­is pela produção de 28 % de trigo, 29% de cevada e 78% de óleo de girassol.

É com os cereais da Ucrânia que as Nações Unidas matam a fome a cerca de 155 milhões de seres humanos, que habitam os destinos pobres de África e do Médio Oriente. Egito, Gana, Senegal, Líbano, vá se lá saber como a população de maior carência de nutrição destes países vai alimentar-se este ano se persistir o bloqueio.

Apesar da guerra e ainda com os silos cheios dos 25 milhões de toneladas da colheita anterior, os ucranianos já lançaram mãos à obra para as sementeira­s deste ano. Trigo, cevada, aveia, girassol e soja. Mas os campos estão minados, os trabalhado­res agrícolas ucranianos deixaram as alfaias e vestiram o camuflado para combaterem as tropas invasoras russas. A escassez de combustíve­l para os tratores agrícolas, a destruição de silos pelos russos, o bombardeam­ento de depósitos de combustíve­l, vão fazer cair a produção em cerca de 50% dos 106 milhões de toneladas de cereais que a Ucrânia semeou em 2021. E depois, onde vão os ucranianos armazenar as novas colheitas se as anteriores continuam a apodrecer nos armazéns portuários sem que os navios as consigam carregar?

O cinismo do Kremlin já se fez ouvir sobre o assunto. E lá vem a chantagem! A Rússia está pronta “para ajudar a uma exportação sem entraves”, mas só se o Ocidente levantar as sanções. Depois, no dizer de Putin, os barcos não circulam por causa das minas ucranianas no Mar Negro. Mas isso não impediu que um barco russo saísse de Mariupol rumo à cidade russa de Rostov, carregado com 2700 toneladas de metal roubado aos ucranianos num miserável exercício de pilhagem. Pilhagem que chegou também aos cereais, onde os russos estão a carregar navios com cereais ucranianos no porto de Sebastopol, na Crimeia. Um derivado da metodologi­a estalinist­a!

Os cereais são uma questão sensível que pode fazer escalar a guerra. Os países bálticos, Estónia e Lituânia, profundos conhecedor­es do modo de atuação do Kremlin, falaram em enviar navios de guerra para o Mar Negro para furar o bloqueio que a Marinha russa está a fazer aos portos da Ucrânia.

Imagine-se, contudo, o risco de uma operação deste tipo?

Mas até quando poderá o mundo continuar a assistir a uma situação de flagrante violação do Direito Internacio­nal? Até quando a Rússia, impunement­e, vai continuar na senda de lançar o caos num equilíbrio mundial construído ao longo das últimas décadas? Até quando Putin pode, impunement­e, pôr em causa o direito à alimentaçã­o de seres humanos mais pobres e desfavorec­idos do mundo? Até quando Putin poderá continuar com esta chantagem da fome, com contornos muito idênticos ao que fez Estaline no holodomor?

Mas onde é que Merkel teria a cabeça quando vislumbrou em Putin um parceiro confiável?

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