A conversa dos “portugueses de bem”
Seria bom que o terceiro partido mais votado fosse um pouco mais claro quando diz que faz política para os “portugueses de bem”. Onde estão eles, afinal? Quem são? Dar-se-iam alvíssaras a esta maior clarividência partilhada.
Confesso o meu cansaço em relação à mensagem, supostamente política, sobre os “portugueses de bem” que André Ventura e o seu Chega se têm esforçado por passar.
Os “portugueses de bem”. Serão aqueles que cumprem as “condições mesológicas da Raça”, sejam elas quais forem, como se escrevia em legislação do Estado Novo? Ou aqueles (aquelas) que acordam às três da manhã na periferia de Lisboa para irem lavar casas de banho, lojas e escritórios, mesmo que tenham nascido na Guiné ou em Angola? Ou aqueles que se erigem de forma audível contra os políticos e a sua corrupção intrínseca, natural, perene, mas se esquecem consecutiva e convenientemente de pagar impostos e contribuições para a Segurança Social?
Os “portugueses de bem”, essa tribo alimentada, qual dieta paleolítica, a ansiolíticos, antidepressivos e álcool, que bate na mulher e nos filhos ao abrigo do seu direito e até dever de correção, que gosta de futebol e se baldeia, cívica e semanalmente, consoante os resultados do seu clube? Os “portugueses de bem”, que adoram a delação, o pequeno justicialismo, a queda de quem lhes parece que subiu e a subida de quem lhes parece que os levará com eles, sejam uma ou outra justificadas e legítimas ou não?
Depois, há também os supostamente mais elaborados. Os outros “portugueses de bem”. Os “mais bem” dos “portugueses de bem”. Os que já leram um livro, que os alicerçou na sua luta contra o mal, especialmente quando ela é rentável a diversos títulos (será assim André Ventura?). Os que fazem negócio à custa de um Estado fraco, lento e dependente, mas português. Os que fazem negócio à custa dos não-portugueses, e portanto, enquanto tal, mesmo que abusados, logo portadores de um tipo de mal, um tifo pequeno, uma leprazita feita da nossa tibieza, o que se esquece convenientemente quando nos servem num restaurante ou apanham cerejas ou rebocam uma parede, solutos perfeitos de pureza lusa e momentânea. Ou, também, quando compram empresas públicas monopolistas ou injetam dinheiro no imobiliário.
Seria bom que o terceiro partido mais votado fosse um pouco mais claro quando diz que faz política para os “portugueses de bem”. Onde estão eles, afinal? Quem são? Dar-se-iam alvíssaras a esta maior clarividência partilhada.
Seria bom um estudo que permitisse estruturar e descrever de forma científica esse tipo de “português de bem”, esse super-homem que só por aqui existe, esse modelo crístico de organismo unicelular, porque só feito de virtude e de lusitanismo. Só assim nos poderemos em verdade comparar com ele e aprender, melhorar um pouco todos os dias, tornarmo-nos um pouco mais, de forma incremental, um pouco mais cada dia, cada hora, um pouco mais como, digamos, como André Ventura. Mas, na verdade, ser “português de bem” é algo que dispensa qualquer ciência, qualquer estudo, qualquer predisposição interior de aperfeiçoamento. Ou se é ou não se é. Mistério da fé – mas da fé de apenas alguns. Aqui não há lugar à redenção. Ninguém pode afirmar: “Eu quero ser um português de bem!”. Duvidar do seu estado de perfeição interna e almejar mais portugalidade de bem é já ser, irremediavelmente, apóstata. E, para esses, apenas o inferno da realidade e da decência pode ser entrevisto.