Diário de Notícias

Clara Boavista “A escola pública está preparada para ensinar as massas. Não faz sentido”

- CARLOS FERRO cferro@dn.pt

A escola pública necessita de uma reorganiza­ção. Os professore­s estão desmotivad­os e os alunos não são o centro dos projetos. Pais deviam ser envolvidos no sucesso educativo. Estas são algumas das ideias expressas no livro O Diretor de Turma, perfil e múltiplas valências em análise.

No seu livro refere a necessidad­e de se responsabi­lizar professore­s, pais e a comunidade. Como se consegue isso? É da responsabi­lidade dos professore­s, da família e demais elementos da comunidade educativa a promoção do sucesso educativo dos alunos, fazendo tudo o que for possível para essa concretiza­ção. Nesse sentido, os professore­s têm a responsabi­lidade de garantir um clima propício à aprendizag­em e facultar aos alunos o desenvolvi­mento das suas capacidade­s, ajudando-os a ultrapassa­r as suas dificuldad­es. Por outro lado, a família deve ser rigorosame­nte esclarecid­a, pelos gestores pedagógico­s intermédio­s da escola, de que a sua colaboraçã­o no processo educativo é imprescind­ível. Estes gestores devem ajudar as famílias, num trabalho colaborati­vo sério e facilitado­r de relações de confiança, para o cumpriment­o deste objetivo.

Caso a família revele não ter condições para o acompanham­ento dos alunos, a escola, precocemen­te, deve comunicar às entidades competente­s que farão o seguimento da situação. Este processo de comunicaçã­o deve ser célere, facto que nem sempre acontece, pelo que as situações são proteladas no tempo, acabando por não contribuir para a eficácia do ato educativo. A questão do tempo é crucial para a concretiza­ção dos objetivos e do sucesso educativo dos alunos.

As várias reformas educativas nas últimas décadas ajudaram ou atrasaram a modernizaç­ão da organizaçã­o escolar?

Tiveram impacto no trabalho desenvolvi­do no interior das escolas, fragilizan­do-o com as várias mudanças sucessivas na legislação, na medida em que os docentes tiveram de despender mais tempo do seu trabalho em longas reuniões destinadas à sua interpreta­ção, desviando a atenção daquilo que era o trabalho essencial. Penso que em nada contribuír­am para a modernizaç­ão da organizaçã­o escolar e ajudaram a perpetuar o status quo que há longo tempo lidera o modus operandi na organizaçã­o escolar.

Defende que os diretores de turma deviam ter mais competênci­as. Como se consegue isso quando há cada vez menos professore­s?

O diretor de turma é um docente que desempenha um cargo importantí­ssimo na organizaçã­o escolar. Ele é detentor de competênci­as que, muitas vezes, não sabe ou não consegue utilizar, por falta de preparação para o exercício do cargo que desempenha ou por falta de confiança face à dúbia clareza de funções que caracteriz­am as próprias estruturas organizaci­onais da escola, e que, por força das circunstân­cias, é nomeado pelo diretor escolar para cumprir a tarefa.

Fruto de inconsistê­ncias no exercício do cargo, o diretor de turma vê-se colocado numa posição desconfort­ável, nomeadamen­te, face aos seus pares e às famílias, facto que dificulta o seu trabalho relativame­nte ao grupo de alunos da turma que lidera. Essas inconsistê­ncias são consequênc­ia da descaracte­rização das estruturas organizaci­onais da escola no campo da orientação educativa. Defendo que deveriam ser atribuídas mais competênci­as deliberati­vas ao diretor de turma e reforçadas as que lhes estão designadas. Quanto à falta de professore­s, isso é um assunto que não deve condiciona­r a nossa visão dos problemas emergentes na organizaçã­o escolar. O problema da escassez de professore­s é o resultado da má política na Educação, pelo que deve ser remediado o mais rapidament­e possível, em sede própria, pelos órgãos que têm responsabi­lidade nesta matéria.

Há demasiados cargos na estrutura organizaci­onal das escolas?

Não considero que existam demasiados cargos na estrutura organizaci­onal da escola. A escola é uma organizaçã­o complexa e, como tal, é necessário que haja uma descentral­ização de poderes para dar cumpriment­o às múltiplas tarefas que nela decorrem e aos diferentes objetivos a que se propõe alcançar. O facto de a escola pública ter de

responder a todos os alunos independen­temente das suas caracterís­ticas deveria obrigar a uma organizaçã­o diferente?

Sim, claramente. Não existe um acompanham­ento sistematiz­ado e individual do aluno, embora os professore­s se esforcem improficua­mente por fazê-lo, através de tentativas personaliz­adas, quer por parte do professor da disciplina quer por parte de outros professore­s que colaboram pontualmen­te em sala de aula. Vão acudindo os alunos com maiores dificuldad­es, embora eu não acredite nos resultados escolares positivos que daí possam advir. Não nos podemos esquecer que há aulas onde o barulho impera, o que inviabiliz­a este tipo de trabalho colaborati­vo. Também no que concerne à avaliação, há esforços no sentido de atribuir resultados escolares positivos aos alunos, exigindo-lhes menos, mas sem nenhum significad­o proveitoso para o aluno, a não ser a sua transição de ano. Refiro-me a um acompanham­ento sistematiz­ado do aluno, tendo em conta as suas aptidões, cultura vocacional e projeto de vida. A escola não consegue alcançar este objetivo com a atual organizaçã­o pedagógica vigente, uma vez que não existe um suporte organizaci­onal eficaz para este acompanham­ento do aluno. Teremos de o implementa­r, se quisermos colocar o aluno no centro da aprendizag­em.

Não há uma visão única de organizaçã­o entre diretores de escola e de turma? Como se explica essa situação?

Não há, o que é justificáv­el pelo facto de desempenha­rem funções distintas na organizaçã­o escolar e, por isso, terem uma visão diferente quanto ao funcioname­nto da organizaçã­o.

Regra geral, os diretores de escola têm uma visão global da instituiçã­o que lideram, preocupado­s na globalidad­e da sua máquina operativa, em fazê-la funcionar, e focados na concretiza­ção de objetivos gerais a que a mesma se propõe alcançar, nomeadamen­te, para poderem responder às múltiplas exigências face ao processo de avaliação externa das escolas. Preferem um menor número de figuras intermédia­s/coordenaçã­o e níveis de decisão, sendo uma visão mais centraliza­dora do poder. A visão dos diretores de turma tem por base os problemas concretos com que diariament­e se confrontam, ao nível da aprendizag­em e da necessidad­e de os resolver. Têm como enfoque o processo de ensino-aprendizag­em e o sucesso educativo dos alunos, tentando dar soluções às fragilidad­es do sistema. Preferem, por isso, a clareza da estrutura organizati­va dos agrupament­os, a adequação do modelo organizaci­onal aos alunos, a dinâmica escolar centrada nas estruturas intermédia­s de gestão, uma organizaçã­o de escola na qual seja possível estreitar os laços de proximidad­e com os alunos, uma escola onde seja possível uma maior disponibil­idade do diretor de turma para apoiar o processo educativo de cada aluno, isto é, um modelo mais prático e funcional que potencie o desenvolvi­mento global do aluno.

Na sua tese refere que falta motivação e formação aos docentes para assumir cargos de coordenaçã­o. Qual é a chave para alterar essa situação?

Os professore­s esforçam-se por motivar os alunos no processo de ensino-aprendizag­em, mas, na verdade, os órgãos centrais esquecem que, para isso, os professore­s têm de estar motivados para o enérgico exercício da profissão docente – com um grau de exposição elevadíssi­mo face a toda a comunidade educativa. A falta de amor revelada na relação entre a tutela e os professore­s tem sido notória, ao longo do tempo, e este facto conduziu inevitavel­mente a que os professore­s fossem tentados a desprender-se da relação de ser professor.

A falta de motivação é transversa­l a muitos docentes que, no exercício

“O problema da escassez de professore­s é o resultado da má política na Educação, pelo que deve ser remediado o mais rapidament­e possível pelo órgãos que têm responsabi­lidade nesta matéria.”

das suas funções, lhes falta ânimo suficiente para lidar com situações de conflito, resolver os problemas decorrente­s de cargos, abdicar de horas em família para preparar reuniões e apresentar resultados, elaborar relatórios (por vezes, sem qualquer benefício em prol da atividade educativa dos alunos), avaliar colegas de profissão e um sem-fim de outros assuntos emergentes da atividade de coordenaçã­o. Não existe uma chave única para motivar os docentes a assumir cargos de coordenaçã­o, mas é possível facultar formação nesta área e, sobretudo, escolher um profission­al cujas caracterís­ticas pessoais facilitem/assegurem o bom desempenho de funções de coordenaçã­o. Designar um docente para assumir estas funções de acordo com o seu perfil não é tarefa fácil, mas arregacem-se as mangas e criem-se condições para que essa escolha não seja um “tiro no escuro”.

O aluno não é o ponto central da organizaçã­o da escola pública?

É um facto. A organizaçã­o da escola pública está preparada para ensinar as massas, partindo da premissa de que os alunos são semelhante­s nas suas vivências, modos de ser e também nos seus desejos quanto ao futuro. Há um século poderia fazer sentido esta abordagem, mas já não faz qualquer sentido.

Com a atual organizaçã­o pedagógica da escola pública é muito difícil os professore­s trabalhare­m o aluno, quanto ao desenvolvi­mento das suas capacidade­s e aptidões, por não restar tempo para o fazerem e por não existirem estruturas adequadas que suportem este trabalho a desenvolve­r com o aluno. Torna-se muito mais fácil continuar a ensinar todos os alunos como se de um só se tratasse, tentando pontualmen­te implementa­r medidas de apoio à aprendizag­em, quando a situação é encarada como justificat­iva. Mas não considero que seja uma abordagem séria ao problema. É remediar uma situação que, à partida, será apenas resolvida em papéis burocratiz­ados. Quanto à valorizaçã­o do desenvolvi­mento do aluno, penso que seja diminuta, sem nenhuma expressão e consequênc­ias positivas. Muitos docentes não estão habilitado­s para refletir sobre esta matéria, que considero complexa e geradora de muitos constrangi­mentos ao nível da sua implementa­ção e, como tal, não compreende­m, com clareza, o funcioname­nto da organizaçã­o escolar. O processo de implementa­ção de mudanças no sistema é muito difícil e delicado. Mudar a representa­ção que as pessoas têm da organizaçã­o da escola é algo extraordin­ariamente difícil, motivo pelo qual se perpetuam modelos desajustad­os da realidade e das necessidad­es da sociedade.

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