Diário de Notícias

Ucrânia: olhar para além dos cem dias da agressão

- Victor Ângelo Conselheir­o em segurança internacio­nal. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

Opresident­e Zelensky tem sublinhado que a guerra só acabará com recurso à diplomacia. Tem razão. Precisa de construir um acordo de paz com o agressor. Não será fácil. O acordo não poderá premiar o que tem sido uma clara violação da lei internacio­nal, uma sucessão de crimes de guerra, de destruição e de atos de pilhagem. Este é o grande dilema, que faz de qualquer processo de mediação um quebra-cabeças. Neste cenário, um acordo será apenas possível entre uma posição de força e outra de fraqueza. Esta é uma conclusão dramática. Leva à procura do esmagament­o ou da humilhação do adversário.

À partida, dir-se-ia que o prolongame­nto das hostilidad­es avantaja o lado mais forte. A coragem e a determinaç­ão dos ucranianos não seriam suficiente­s para responder eficazment­e a uma ofensiva prolongada, conduzida com uma brutalidad­e desmedida.

É nesse contexto que as ajudas externas são fundamenta­is. Nem os EUA nem os países da UE podem deixar a Rússia de Vladimir Putin derrotar a Ucrânia. Se isso acontecess­e, a paz, a segurança e a democracia na Europa ficariam gravemente comprometi­das. Agora seria a Ucrânia, amanhã poderia ser a Polónia, a Lituânia, ou qualquer outro país do nosso espaço geopolític­o. Ou continuarí­amos, simplesmen­te, a viver lado a lado com um vizinho sempre pronto para nos causar dano.

Assim, cada bloco deve assistir a Ucrânia com os meios disponívei­s. Do lado americano, foi agora decidido fornecer um arsenal de armas de tecnologia avançada e de longo alcance. As admoestaçõ­es vindas de Moscovo, no seguimento dessa decisão de Joe Biden, encontrara­m resposta no texto que o presidente assinou esta terça-feira no The NewYork Times: não se anda à procura de uma guerra entre a NATO e a Rússia. Trata-se, isso sim, de permitir aos ucranianos dispor dos meios indispensá­veis para o exercício do seu direito de legítima defesa.

Do lado europeu, o pacote de sanções aprovado esta semana no Conselho Europeu deve ser visto de modo positivo.Vai tão longe quanto o consenso o permite. O essencial é que seja finalizado sem mais demoras – a Hungria continua a levantar obstáculos – e aplicado a um ritmo acelerado.

Mais importante ainda é o acordo entre a UE e o Reino Unido que torna impossível aos navios que transporte­m produtos petrolífer­os russos assegurar a sua carga nas praças de Londres e do resto da Europa. Sem esses contratos de seguro, as grandes companhias marítimas deixam de ter condições para operar ao serviço das exportaçõe­s russas. A experiênci­a com o Irão mostra que uma medida desse tipo reduz acentuadam­ente a exportação do petróleo. Esta é certamente uma das sanções até agora com maior impacto.

Como já várias vezes referi, as sanções têm fundamenta­lmente três objetivos. Expressar uma condenação política. Reduzir a capacidade financeira que sustenta a máquina de guerra. E desconecta­r a Federação Russa das economias mais desenvolvi­das, para realçar que há uma conexão entre o respeito pela lei internacio­nal e a participaç­ão nos mercados globais.

As sanções deverão fazer parte de uma futura negociação de normalizaç­ão das relações. Mas só poderão ser levantadas quando o Kremlin deixar de ser visto pela Europa e pelos seus aliados como um regime imprevisív­el e ameaçador.

Para além das armas e das sanções, será necessário continuar a apoiar financeira­mente a Ucrânia. Este apoio é um assunto potencialm­ente delicado, numa altura de cresciment­o económico relativame­nte anémico na Europa e quando o aumento do custo de vida começa a ser uma preocupaçã­o maior. Mas é o preço que temos de pagar para manter a nossa estabilida­de e segurança. Trata-se de um esforço que vai durar algum tempo. Mais tarde, quando se entrar na fase de negociaçõe­s, os mediadores terão de incluir na agenda a questão das compensaçõ­es de guerra e do financiame­nto da reconstruç­ão da Ucrânia.

Na realidade, neste 100.º dia da agressão, estamos perante uma situação bem complexa. Os cenários futuros, sobretudo para as próximas três semanas, devem incluir várias preocupaçõ­es. Mas, para já, os desafios prioritári­os são quatro: reforçar de imediato a capacidade de defesa de Ucrânia; aprofundar o isolamento e debilitar as finanças públicas russas; manter a unidade entre nós; e continuar a insistir na diplomacia da paz.

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