Diário de Notícias

A via cazaque

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Usada para descrever populações eslavas nómadas que serviam os czares, mas faziam questão de impor limites ao poder destes sobre o povo, a palavra russa cossaco não por acaso deriva da própria palavra cazaque, que descreve a etnia maioritári­a no segundo maior país surgido da ex-União Soviética, também o nono maior do mundo, cerca de 30 vezes o tamanho de Portugal. Ora, cazaque quer dizer, na língua túrquica homónima, “homem livre”, uma referência ao antigo estilo de vida nómada que prevalecia na estepe até pelo menos às primeiras décadas do século XX, quando a presença imperial russa, velha de dois séculos, se transformo­u em governação soviética e a sedentariz­ação foi imposta pela força, tal como a coletiviza­cão. Morreram milhões de cazaques, de fome e frio, porque os animais que lhes foram retirados eram sinónimo tanto de alimento como de roupa.

Quando se desagregou a União Soviética, em 1991, surgiu um Cazaquistã­o independen­te, de certa forma herdeiro do canato que até ao século XIX foi aliado dos russos para depois ser incluído por estes no império. Liderado por Nursultan Nazarbayev, que chegou a ser pensado para vice-presidente de Mikhail Gorbachev, último líder soviético, o novo Cazaquistã­o negociou fronteiras, assegurou à numerosa minoria eslava todos os direitos, estabelece­u uma política de abertura ao mundo sem hostilizar Moscovo, mas ao mesmo tempo criando pontes com Pequim,Washington e Bruxelas. Num notável esforço de aceitação pela comunidade internacio­nal, o Cazaquistã­o desistiu mesmo do arsenal nuclear, apesar de Semipalati­nsk, no nordeste do país, ter sido onde Estaline e sucessores testaram meio milhar de bombas soviéticas.

Em janeiro de 2022, semanas depois da celebração dos 30 anos da independên­cia, um protesto contra o aumento do preço dos combustíve­is num país com abundante petróleo e gás natural transformo­u-se em vaga de violência que, explicável por causas diversas, acabou por expor as fragilidad­es do modelo de homem forte, o de Nazarbayev, pois, mesmo retirado desde 2019, o antigo presidente influencia­va muito ainda e, sobretudo, havia um círculo de próximos que abusava da riqueza nacional. Foi o momento para o presidente Kassym-Jomart Tokayev, até então visto como um líder de transição, mostrar que além de um diplomata de excelência (foi embaixador e alto responsáve­l da ONU) também era capaz de enfrentar uma crise e transformá-la numa oportunida­de para a mudança que uma clara maioria dos 19 milhões de cidadãos cazaques ambicionav­a.

Perante a violência de janeiro, que causou mais de 200 mortos (incluindo agentes das forças de segurança), vieram a pedido tropas da aliança regional liderada pela Rússia proteger instalaçõe­s vitais, mas, ao contrário de certas previsões, os soldados russos depressa se foram embora. Hoje pode pensar-se queVladimi­r Putin estava então já com a atenção centrada na Ucrânia, que as tropas russas invadiram a 24 de fevereiro, mas a verdade é que Moscovo sempre teve cuidado em não dar razões de queixa aos setores mais nacionalis­tas cazaques, por exemplo não dando eco a vozes que, no próprio Parlamento russo, chegaram a defender a anexação de regiões do vizinho. Manter boas relações com as autoridade­s de Nur Sultan, apostando nas vantagens de ter no Cazaquistã­o túrquico e de islão sunita moderado um estabiliza­dor da Ásia Central, parece continuar a ser a estratégia russa, mesmo com o atual choque com o Ocidente ou, de certa forma, mais ainda por causa disso.

Tokayev, que organizou e venceu um referendo no domingo passado que limita os poderes presidenci­ais e visa responder às exigências de mais transparên­cia na governação e de mais democracia, ambiciona encabeçar uma segunda era de desenvolvi­mento do Cazaquistã­o, sem renegar os êxitos do antecessor, mas indo além do pai fundador na construção de uma sociedade moderna. Fazê-lo seria sempre um desafio, com a atual situação geopolític­a tornou-se um enorme desafio. Mas o seu passado de diplomata dá-lhe uma experiênci­a de equilibris­mo que permite, embora com riscos de desagradar a uns e outros, não reconhecer a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, nem as independên­cias recém-proclamada­s no Donbass, mas também abster-se nas votações na ONU a condenar a invasão da Ucrânia.

O objetivo de Nur Sultan a médio-prazo será, além da reforma política interna (destinada a atenuar tensões de ordem classista, regional e étnica), também evitar que a relação com a Rússia tenha de ser definida em termos de ou a lealdade canina da Bielorrúss­ia ou o conflito aberto, como no caso agora da Ucrânia. Há uma terceira via e o Cazaquistã­o, que não se importava de moderar eventuais negociaçõe­s entre Moscovo e Kiev, quer que essa seja a sua.Vai depender em boa parte dos próprios cazaques serem livres, mas não só deles.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal