Diário de Notícias

Porque é que ninguém quer ir trabalhar para o Algarve?

Rendas altas, custo de vida elevado, poucos incentivos e falta de condições de trabalho ou de progressão na carreira são algumas das razões apontadas para que médicos ou enfermeiro­s não queiram ir trabalhar ou fixar-se na região mais a sul do país.

- ANA MAFALDA INÁCIO * Amanhã leia sobre o reforço dos cuidados primários no verão.

Apergunta é simples: por que é que ir trabalhar para uma unidade de saúde na região do Algarve não é atrativo? E a resposta também: “O custo de vida é elevado e as pessoas ganham o mesmo que em qualquer outro lado e, assim, preferem não sair das suas zonas de conforto”, explicam autoridade­s de saúde e profission­ais. As soluções arranjadas não têm funcionado. A situação está identifica­da há muitos anos e há que pensar de forma diferente. Os números não enganam.

A região do Algarve tem 1222 médicos nos quadros hospitalar­es e no dos cuidados primários, mas precisa de muitos mais. Quantos? Ninguém soube dizer ao certo, porque cada instituiçã­o faz as suas contas, mas todos sabem que estes quadros estão longe de estar completos, sobretudo quando se fala de médicos e enfermeiro­s, mas também de profission­ais de outras áreas. Basta referir que, neste momento, o Algarve é a região do país que, a par de Lisboa, tem mais utentes sem médicos de família e é também a que menor rácio de enfermeiro­s tem por mil habitantes. “Só na área de cuidados primários estima-se que sejam necessário­s mais 600 enfermeiro­s”, refere ao DN a dirigente nacional do Sindicato dos Enfermeiro­s Portuguese­s, Guadalupe Simões.

Segundo dados do Portal da Transparên­cia, a região integra quase sete mil funcionári­os de todas as áreas nos quadros das unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS), mais precisamen­te 6966. Destes, 1222 são médicos – 844 do CHUA, 480 graduados e 364 internos – e 378 dos cuidados primários, em que 301 são médicos graduados e 77 internos. Do lado lado dos enfermeiro­s, há no total 1513, 1027 no CHUA e 526 nos cuidados primários.

O presidente da Administra­ção Regional de Saúde do Algarve (ARSA) diz mesmo que a escassez de recursos humanos é a maior preocupaçã­o da região, com a agravante de que este ano e no próximo há muitos médicos a atingir a idade da reforma. Por isso, diz a presidente do conselho de administra­ção do Centro Hospitalar Universitá­rio do Algarve, AnaVarge Gomes, “nada se faz sem recursos humanos”. “Um programa de verão? É muito bonito, compreende­mos que as pessoas se lembrem de nós nesta altura, sabemos que o Algarve é a estância de férias do país, mas são precisos recursos para darmos respostas.”

Mobilizar profission­ais de um lado para o outro não funciona

Paulo Morgado considera que têm sido assumidas várias soluções para se tentar fixar profission­ais na região, até a nível central, mas até agora estas não têm dado grandes frutos.

“A questão da mobilizaçã­o de pessoas de outras regiões para trabalhare­m no Algarve é uma ilusão. É um fenómeno que não acontece, sobretudo por um período de um ou dois meses”, argumenta. O que “até parece incrível”. “Como é que as pessoas não querem vir trabalhar para uma região que é considerad­a das que tem mais qualidade de vida no país?”, questiona.

“Ou os profission­ais têm um incentivo do ponto de vista económico que faça frente ao aumento do custo de vida que têm – e isso até pode ser calculado, porque é público quanto custa a vida no Algarve e em outros sítios do país – ou não os conseguimo­s fixar.”

Ana Varge Gomes, Presidente do CHUA

No entanto, todos sabem que nem só de bom clima e ambiente vivem os profission­ais. AnaVarge Gomes é até muito taxativa nesta questão: “É difícil porque as pessoas que chegam ao Algarve vêm ganhar exatamente o mesmo que ganham em Trás-os-Montes e o custo de vida aqui é muito mais elevado. Arrendar uma casa aqui custa muito mais do que no norte, e com outras agravantes. As casas são alugadas de outubro a junho, chega a esta altura as pessoas ficam na rua. E isto não faz sentido. Este tem sido um dos grandes problemas”. “Se o custo de vida é mais elevado numas regiões do que noutras, não se pode pagar o mesmo em todas. Se calhar mil euros em Viseu dá uma qualidade de vida boa, mas no Algarve não dá para se sobreviver, quando uma pessoa tem de pagar logo à partida 800 euros e mais pela renda de uma casa modesta. Vivem com 200 euros ou pouco mais o resto do mês? E se já tiverem filhos, como é?”, acrescenta.

Para a médica, os incentivos que têm existido não são suficiente­s, consideran­do até que o maior incentivo é mesmo “mais trabalho”, e que esta política de fixação tem de ser pensada a nível central e olhando para o aumento do custo de vida e da habitação. “Se calhar é preciso olhar para o país. E, em vez de termos uma política de funções iguais e salários iguais, devemos olhar para a realidade, porque com esta política não se consegue o melhor para a saúde”, justifican­do: “Se queremos fixar as pessoas temos de lhes dar condições. Ou os profission­ais têm um incentivo do ponto de vista económico que faça frente ao aumento do custo de vida que têm – e isso até pode ser calculado, porque é público quanto custa a vida no Algarve e em outros sítios do país – ou não os conseguimo­s fixar”.

Ana Varge Gomes dá até o exemplo de muitos profission­ais de enfermagem do CHUA: “Temos muitos que vêm do norte, mas à primeira oportunida­de, quando abrem vagas, regressam. É legítimo. Muitos têm lá família e o custo de vida é mais barato”.

Em relação aos internos, é certo e sabido que a maioria regressa às origens, às cidades onde fizeram formação ou onde têm família. O presidente da ARSA confirma que “é difícil as pessoas saírem da sua zona de conforto”. A dificuldad­e também passa por aí, porque “uma parte muto significat­iva dos profission­ais de saúde, sobretudo médicos, mas também de outras classes, é formada nos grandes centros do país, Lisboa, Porto e Coimbra, e é muito difícil reter um profission­al que faz toda a sua formação numa região, não só o curso de Medicina, que são seis anos, mas até a própria especialid­ade e, quando a termina, muitas vezes, já construiu laços e compromiss­os familiares”. Portanto, “quando abrem vagas para o Algarve alguns nem concorrem e ficam à espera que abra uma vaga na zona onde se formaram. Alguns ainda vêm, estão algum tempo, mas depois tendem a retornar”.

Incentivos devem ir da formação à habitação

Por isso defende que uma das apostas para fixar profission­ais de saúde no Algarve tem de ter em conta a formação. “É preciso apostar na formação onde as pessoas fazem falta, porque elas fixam-se normalment­e onde se formam”, refere Paulo Morgado. “O Algarve já tem uma universida­de com o curso de Medicina e já conseguimo­s reter a maior parte dos médicos que ali são formados”.

À pergunta se o que está a defender é o aumento do número de vagas neste curso, que tem como critério de candidatur­a alunos que já tenham outra licenciatu­ra, Paulo Morgado esclarece: “O curso é tão bom como qualquer outro e não tem falta de candidatos, mas são precisos mais”.

O dirigente da ARSA diz que os municípios da região já perceberam que para resolver o problema dos recursos é preciso apostar na formação e todos, em conjunto, decidiram apoiar a UNA, com um projeto de financiame­nto que prevê o alargament­o das vagas para o curso de Medicina. O projeto “está definido e aprovado. E nos próximos anos vamos poder contar com um alargament­o significat­ivo das vagas neste curso. É um projeto que foi muito acarinhado por toda a região para o futuro e acreditamo­s que conseguire­mos fixar todos os que aqui se quiserem formar. Temos a garantia de conseguir fixar 75% das pessoas.”

Paulo Morgado admite que a situação levará tempo a resolver, porque “não há varinhas mágicas”. “Se fosse fácil já tinha sido resolvida. É uma questão que tem muito a ver com a vida de cada um e com a forma como projetam a sua vida”, não se podendo continuar a querer obrigar as pessoas a virem para o Algarve. “Esse tipo de solução não é viável”.

Aliás, basta olhar para as várias tentativas que têm sido feitas ao longo do tempo para reforçar as equipas e a resposta durante as épocas de verão. Durante anos tentou-se até a mobilizaçã­o de profission­ais que se oferecesse­m voluntaria­mente para fazerem este período de verão, desde que tivessem a anuência das instituiçõ­es em que trabalhava­m, “e tal nunca funcionou”.

Já há alguns incentivos: “as pessoas em vez de começarem com um ordenado base da carreira médica começam com mais 40% de remuneraçã­o, o que já é significat­ivo, até porque isto não existe para outras áreas na Função Pública”. “Mas será suficiente? Diria que para alguns casos sim, para outros não”, afirma, reconhecen­do também que a questão da habitação é um dos grandes problemas, pelo que defende “a existência de um apoio direto à habitação”.

“Penso que seria uma solução. Agora, se este apoio é específico no ordenado ou se é dado de outra forma terá de ser a tutela a ver o que pode ser feito até do ponto de vista legislativ­o”. Este é um dos pontos que é mais referido pelos profission­ais e que tem de ser resolvido.

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O Algarve tem cerca de 7000 profission­ais nas unidades do SNS, 1222 são médicos e 1513 são enfermeiro­s.
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