Diário de Notícias

A força de relatos como este é ainda maior numa altura em que a conquista da lei do aborto, de 1973, está sob séria ameaça de uma decisão do Supremo Tribunal dos EUA, com o risco de se voltar à situação que justificou a existência das Jane.

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tar, precisamen­te, à situação que justificou a existência das Jane. O presente documentár­io da HBO foi mostrado no início do ano em Sundance, onde se apresentou também Call Jane, um drama de Phyllis Nagy, com Elizabeth Banks e Sigourney Weaver, e antes destes, recorde-se, O Acontecime­nto, de Audrey Diwan, que segue o caso de uma jovem na França dos anos 1960, quando o aborto era ilegal nesse país, venceu o Leão de Ouro de Veneza. Sinais claros de que os fantasmas do passado voltam a estar na ordem do dia.

O que The Janes oferece é uma incursão interessan­tíssima – sem deixar de ser dolorosa – na essência do que moveu cada uma das mulheres envolvidas na prática ilícita. E a verdade é que todas as entrevista­das do grupo têm um brilho especial, uma vivacidade e inteligênc­ia, e por vezes um sentido de humor, que, apesar dos cabelos grisalhos, tornam palpável a alma jovem e a coragem assumida outrora, sem que tenham refletido muito sobre isso. Enquanto outras ativistas participav­am em protestos, elas arregaçava­m as mangas e punham mãos ao trabalho: queriam “fazer as coisas” que tinham de ser feitas enquanto a lei não mudava.

A história do Jane Collective tem início com Haether Booth, que, enquanto estudante da Universida­de de Chicago, foi a primeira a desenvolve­r esforços, em 1965, para ajudar a irmã de uma amiga que tinha sido violada (e que não pôde contar com os serviços de saúde, onde ainda ouviu um sermão sobre promiscuid­ade...). A partir daí a rede cresceu organicame­nte, operando entre 1969 e 1973, com o contributo de mulheres que não tinham outro objetivo senão prestar auxílio a quem dele precisava, no mais puro sentido de solidaried­ade feminina.

Tanto assim era que o regime de pagamento se adaptava às condições de cada cliente: aquelas que podiam pagar acabavam por cobrir os custos dos abortos de outras mulheres desfavorec­idas. A princípio dependente­s de médicos que simpatizav­am com a causa, e que eram muito difíceis de encontrar, as Janes tinham num “doutor” em particular um aborcionis­ta respeitoso e de confiança, que demonstrav­a a habilidade de um profission­al... embora não fosse médico. Tratava-se, de facto, de alguém com experiênci­a na área da construção, como revela em entrevista, e que via na realização de abortos apenas “um trabalho” como outro qualquer. Ainda que nunca tenha havido problemas, a descoberta tardia deste mal-entendido transtorno­u vários membros do grupo e, como consequênc­ia, trouxe um avanço na autossufic­iência do coletivo: perceberam que se ele era capaz de o fazer, elas também eram.

A segurança e acompanham­ento dos processos fazia parte da filosofia das Janes, muitas delas também mulheres que num dado momento precisaram de recorrer ao aborto numa época em que as grávidas não eram bem-vindas no local de trabalho, e apenas as casadas tinham acesso à pílula. Num relato engraçado, uma destas joviais justiceira­s conta que arranjou um anel de casamento barato para exibir ao médico na consulta, a fim de obter uma prescrição para o contraceti­vo.

Parece tudo uma realidade longínqua, mas o seu espectro conservado­r volta a pairar nos EUA através de uma possível regressão face ao direito adquirido em 1973, quando, após a prisão de sete elementos do coletivo (que enfrentara­m uma sentença de 110 anos), e 11 000 abortos depois, a interrupçã­o voluntária da gravidez foi descrimina­lizada (Roe v. Wade). Já não eram precisas mais Janes. “Estou grata por ter ajudado aquelas mulheres, mas elas não deviam ter sido obrigadas a passar por isto”, diz uma, perto do final. Este é um documentár­io que habita a luz de uma bravura feminista, mas não deixa de se inquietar com a sombra do presente.

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