George Lucas: a aventura, o império e a saga que continua (para além dele)
LEGADO Na mesma altura em que chega às livrarias portuguesas uma biografia de George Lucas, no Disney+ está disponível a mais recente série do universo Star Wars. Percorrendo a saga íntima do homem que espera ser recordado como um dos pioneiros do cinema
Um robô chamado R2-D2 não funciona. É com este impasse no primeiro dia de rodagem de StarWars – 22 de março de 1976 – que começa a biografia do realizador frustrado que se tornou um dos mais bem-sucedidos produtores da indústria cinematográfica americana. Começar in media res faz todo o sentido. Assim como esse primeiro Star Wars não seria o Episódio I da saga, também o biógrafo Brian Jay Jones entendeu que um prólogo contendo o ambiente caótico da rodagem que mudaria para sempre a face do cinema popular americano seria a entrada justa para abordar a história da figura em questão. George Lucas: Uma Vida (por cá editado pela Desassossego, chancela da Saída de Emergência) arranca então com mau tempo na Tunísia, droides sem bateria e um “fato de plástico dourado que assentava mal”, só para nos suspender na descrença do jovem californiano barbudo de 31 anos que achava que tudo estava perdido.
Como bem sabemos, não estava. O cenário desordenado da rodagem de Star Wars é, de resto, apenas um dos momentos que levaram Lucas à exaustão, fazendo-o repetir, de cada vez que se sentava na cadeira de realizador, que era uma experiência “penosa” e não haveria uma próxima; queria reformar-se o mais depressa possível.
Esta característica de Lucas – de colocar imenso esforço em cada projeto, aventando sempre que seria o último – é algo que Jones capta muito bem na biografia, um trabalho que resultou de uma minuciosa pesquisa e escrita ao longo de três anos (a publicação original é de 2016). E esse sentido de esforço viria do pai, George Lucas Sr., dono de uma papelaria na pequena cidade de Modesto, na Califórnia, onde Lucas passou a infância e adolescência com o peso de lhe vir a ser imposto o negócio de família. Na verdade, o seu primeiro ato de rebeldia aconteceu quando recusou a oferta do pai, que tanto se esforçara para garantir o seu futuro, com uma frase profética: “Para que saibas, vou ser milionário antes de chegar aos 30 anos!”
Pois bem, Lucas tinha 28 quando a sua segunda longa-metragem, American Graffiti: Nova Geração (1973), o mais pessoal dos seus filmes, se revelou um sucesso inesperado, tornando-o... milionário. Um milionário não esbanjador (ao contrário de um certo amigo, Francis Ford Coppola) e desejoso de se livrar de qualquer superintendência dos estúdios.
Mas também esse desejo vem de trás, do tempo de estudante na escola de cinema da Universidade do Sul da Califórnia (USC), que, tal como outras, formou uma geração de entusiastas: “De meados da década de 1960 ao início da década de 1970 viveu-se, de facto, um período extraordinário nas maiores escolas de cinema norte-americanas – uma curta faixa de tempo que deu origem a alguns dos mais duradouros e prolíficos realizadores, montadores, argumentistas, produtores e técnicos. As escolas de Nova Iorque estavam a criar artistas com
É irónico que o jovem “a meio caminho entre um hipster e um janota, a sua versão equivocada do ar fixe de Los Angeles” que se destacou na universidade com as curtas experimentais intituladas com números e desprezava Hollywood, viria a ser dono de um império chamado Lucasfilm.
uma abordagem mais árida e dura do cinema, como Martin Scorsese e Oliver Stone na Universidade de Nova Iorque, e Brian De Palma na Columbia. Na Califórnia, o versátil Francis Ford Coppola avançava arduamente na UCLA – ao mesmo tempo que escrevia e realizava filmes de terror de baixo orçamento para Roger Corman –, enquanto Steven Spielberg estava na Universidade Estatal de Long Beach, improvisando o seu próprio programa de cinema, do qual desistiria em 1968, muito perto de obter a licenciatura. Mas seria a USC a produzir turmas notáveis umas atrás das outras durante quase uma década”, escreve Jones.
É bastante irónico pensar que o jovem “a meio caminho entre um hipster e um janota, a sua versão equivocada do ar fixe de Los Angeles”, como alguns o descreviam, que se destacou na universidade com as suas curtas experimentais intituladas com números (1:42.08, 6-18-67, Electronic Labyrinth THX 1138 4EB) e que desprezava Hollywood, viria a ser dono de um império chamado Lucasfilm. Enfim, a contradição não é assim tão simples: apesar de StarWars ter travado indiretamente o caminho que um certo cinema anti-heroico estava a fazer (Taxi Driver, de Scorsese, por exemplo), representou para Lucas uma possibilidade de “independência” pessoal, sem que deixasse de acalentar a vontade de regressar a essa génese experimental da sua obra.
Coppola foi dos que tentou muitas vezes puxá-lo para as origens, tendo sido inclusive, no início, o primeiro a acreditar no seu talento e a incentivá-lo a escrever o argumento da sua longa-metragem de estreia: THX 1138 (1971), um prolongamento da curta Electronic Labyrinth THX 1138 4EB, que propunha um mundo futurista e controlador do qual os protagonistas deveriam tentar escapar. Uma metáfora muito clara daquilo que também Lucas procurava: escapar ao controlo do dito sistema de estúdios, e ser ele a fiscalizar o mais ínfimo aspeto das suas realizações. Quando assinou THX 1138, já estava metido na aventura do cinema (semi)independente com Coppola – fundaram juntos a American Zoetrope –, mas a magia durou oito meses. Nesse tempo, Lucas ganhou consciência de duas coisas: tinha muita dificuldade na escrita de argumentos, embora fosse bom a lançar ideias narrativas, e era melhor estabelecer a sua própria produtora independente. O que fez logo em 1971.
George Lucas: Uma Vida conta tudo isto em detalhe, cruzando as histórias de Coppola (desavenças e irmandade) e de Spielberg (companheirismo e Indiana Jones) com a evolução de Lucas, que depois de ser chamado menino-prodígio em virtude do sucesso de American Graffiti, tinha de dar seguimento, de alguma maneira, ao ponto alto que atingira. “Nenhum outro projeto levaria Lucas a sangrar mais do que Star Wars. Ao longo de quase três anos, agonizaria com enredos e personagens, enchendo-se de romances de ficção científica, folclore, livros de banda desenhada e filmes em busca de inspiração. Debater-se-ia rascunho após ras-cunho, escrevendo e reescrevendo, recolhendo em rascunhos anteriores cenas e subenredos de que gostava, jogando com a grafia de planetas e personagens e tentando dar sentido a um argumento sempre em expansão que começava a escapar-lhe ao controlo. E repetidas vezes deparava-se com amigos e executivos dos estúdios [Twentieth Century Fox] desconcertados com as suas histórias, pouco convencidos de que alguma vez levaria algo daquilo ao ecrã.”
Quando lhe perguntavam do que se tratava, tinha sempre pronta uma resposta do género: “Uma space opera do género Flash Gordon e Buck Rogers”, ou “uma combinação de James Bond com 2001... superfantasia, capas e espadas e armas laser e naves espaciais a disparar umas contra as outras”, mas, acrescentava, “não é afetado. Pretende ser um filme de aventuras e ação entusiasmante.” Pode-se acusar Lucas de muita coisa, como aconteceu ao longo das décadas pós-Star Wars, mas honestidade é algo que fazia parte do ADN criativo da saga. Havia uma genuína intenção de trazer às novas gerações uma narrativa de positividade, que devolvesse a crença “de que ainda era possível parar e sonhar com terras exóticas e criaturas estranhas.”
Mais tarde, quando o amigo Brian De Palma, que tinha ajudado no casting, assistiu com Spielberg, John Milius e outros a uma versão primitiva da montagem, exagerou na sinceridade: “Que merda é esta? Onde está o sangue quando disparam contra as pessoas?” Já Spielberg foi o único que disse ter gostalhões do, sem reservas. Spielberg que, com Tubarão no currículo, tinha uma pequena ideia do que era um blockbuster em potência... Para mais, John Williams abençoaria o resultado com uma banda sonora melhor que a encomenda. O resto ficou à vista: era o nascimento de uma saga astronomicamente rentável, assente num conceito de Força, com bons e maus bem definidos, uma constelação de personagens e uma “resposta ao cinismo, uma injeção de otimismo no braço da psique americana”, nas palavras de Brian Jay Jones. Depois de assinar o primeiro filme, porém, Lucas precisou de descansar do papel horroroso que para ele era o de realizador. Ainda regressaria a essa casa de partida, mas o lugar do produtor assentou-lhe que nem uma luva: além de estar rico, podia finalmente controlar.
Obi-Wan Kenobi e Light & Magic
Desde que vendeu a LucasFilm à Disney, em 2012, por 4,05 mil mide dólares, George Lucas está praticamente na reforma, mas não deixa de acompanhar o que vai sendo feito do seu legado – que está muito para além dos filmes canónicos Star Wars. Iniciou-se a era dos
spin-offs e ao reforço do merchandising têm-se somado séries, que vão chegando ao serviço de streaming Disney+ a um ritmo bastante notório, com destaque para The
Mandalorian, provavelmente o melhor exemplo da extensão espiritual deste universo. A O Livro de Boba Fett (esta menos conseguida), segue-se agora Obi-Wan Kenobi, com Ewan McGregor a retomar o papel do Mestre Jedi dez anos depois dos acontecimentos de Star
Wars: AVingança dos Sith, que levaram o aprendiz Anakin Skywalker para o lado negro da Força. É então Darth Vader (Hayden Christensen) que Obi-Wan Kenobi terá de enfrentar, embora no primeiro episódio não tenha de facto muito que fazer, procurando manter-se em paz e sossego...
A série acaba por alcançar um esquema de ação mais colorido quando Obi-Wan é obrigado a “mexer-se” para resgatar a pequena Leia, que foi usada como isco precisamente para chegarem ao Jedi. A partir daqui, com néons e coreografias complexas, os episódios de Obi-Wan Kenobi parecem estar a ganhar fôlego para o confronto mais esperado.
Próxima entrada: a 27 de julho chega à Disney+ a série documental Light & Magic, sobre a empresa de efeitos especiais homónima (uma divisão da Lucasfilm) que George fundou para trabalhar no primeiro StarWars, e que se converteu “numa das pedras basilares do império cinematográfico de Lucas”, como escreve Jones na biografia. Os seis episódios, que incluirão imagens e histórias de bastidores, são assinados por Lawrence Kasdan, amigo do criador e coargumentista de alguns dos filmes da saga. Seja o que for que haja de novo, o legado StarWars parece um corpo vivo.
Quando Brian De Palma, que tinha ajudado no casting, assistiu com Spielberg, John Milius e outros a uma versão primitiva da montagem, exagerou na sinceridade: “Que merda é esta?” Já Spielberg foi o único que disse ter gostado, sem reservas.