Que uma guerra mundial pudesse ter sido desencadeada por um concerto de flatos de um banco de arenques ao largo de Estocolmo é algo que nos diz muito do pouco que sabemos sobre o mundo da natureza – e dos riscos que essa ignorância implica até para a noss
é, aliás, um indício exemplar da estupidez e da irracionalidade humanas. Em 2014, no decurso da invasão da Crimeia, o jornalista Tim Judah percorreu a Ucrânia cima abaixo como correspondente da Economist e da New York Review of Books (para esta última, de resto, Judah tem feito agora notáveis reportagens em terras ucranianas). O resultado foi um livrinho devastador (até pelas histórias de vida que nele se contam e pela descrição das atrocidades russas na Crimeia e no Donbass), intitulado
(Penguin, 2015). A dado passo, Judah foi à Bessarábia e, para nos dar uma pálida noção do que tem sido a vida naquelas paragens, e em todo o resto da Ucrânia, limita-se a enumerar quem as dominou nos últimos 200 anos: de 1812 a 1878, foram da Rússia; de 1856 a 1878, da Moldova; de 1878 a 1918, novamente da Rússia; de 1918 a 1940, passaram para a Roménia; de 1940 a 1941, foram dominadas pela União Soviética; de 1941 a 1944, regressaram à Roménia; de 1944 a 1991, foram para a URSS; de 1991 em diante, passaram a integrar a Ucrânia. E isto, note-se, são apenas as transferências mais importantes porque, se descermos ao pormenor, a Bessarábia mudou muito mais vezes de mãos e de senhores. Claro está que todas essas mudanças implicaram guerras, milhões de mortes, atrocidades várias, coisas horríveis.
Quando olhamos para tudo isto, para aqueles 200 anos de balbúrdia geopolítica, para aquele cortejo de mortos, de órfãos, de viúvas, de destruição permanente, sentimos algum regozijo – egoísta é certo, mas inevitável – por vivermos aqui nos fundos da Europa, nesta nossa periferia soalheira e pacata. É certo que, em alturas tranquilas, maldizemos Portugal e o seu “atraso”, a condição geográfica e histórica que nos afastou do coração das rotas do comércio e do progresso, da ilustração e das artes, dos grandes movimentos culturais e intelectuais europeus. Mas, nos tempos que estamos vivendo, acabamos por descobrir que afinal, afinal, talvez não seja assim tão mau sermos periféricos e distantes, estarmos longe de uma região do mundo que é «central», sem dúvida, mas que pouco tem podido aproveitar dessa centralidade. Na verdade, no caso da Ucrânia e países limítrofes (Polónia, Estados bálticos, etc.), a centralidade geográfica tem sido uma maldade histórica, tantas foram as vezes que aquelas terras mudaram de mãos, tantas foram as guerras e as chacinas aí travadas. A nós, portugueses, com fronteiras estabilizadas há muitos séculos, talvez seja difícil alcançar a monumental estupidez que, ao longo da História, aqueles povos têm sido capazes de fazer uns aos outros, algo que desafia a compreensão humana e que nos faz duvidar da racionalidade e da superioridade da inteligência da nossa espécie.
É difícil, de facto, falar da superior inteligência de um animal capaz de infligir tanto sofrimento às outras espécies e à sua própria espécie. Desde logo, por ignorância: no mar existem 2,2 milhões de espécies, das quais só conhecemos menos de 10%; quer dizer, mesmo actualmente, com tanta tecnologia e com tanta ciência, ignoramos ainda cerca de 91% das espécies marinhas. As que conhecemos, muito poucas, têm-nos dado motivos de sobra de maravilhamento e fascínio. Pense-se no peixe-palhaço, por exemplo. Os peixes-palhaços vivem em família e quando, por uma razão qualquer, a mãe abandona o lar ou é morta, o seu companheiro transforma-se em fêmea e o filho mais velho assume o lugar do pai. Ou seja, uma novela freudiana e mexicana nos mares de coral: orfandade materna, transformismo do progenitor, família disfuncional, usurpação da identidade paterna, provável incesto, com laivos homoeróticos, entre pai que passou a mãe e filho que passou a pai. As consultas de psicanálise dos peixes-palhaços não devem ser, digamos, coisa fácil.
Além do encantamento contante, as espécies marinhas têm-nos dado muito, muitíssimo, e poderiam dar muito mais se as conhecêssemos e protegêssemos melhor. É o caso das arenícolas, aquelas minhocas minúsculas que enchem as praias com rolinhos de areia. As arenícolas têm uma hemoglobina que transporta o oxigénio 40 vezes melhor do que a hemoglobina humana, além de ser compatível com todos os grupos sanguíneos. Graças a elas, às arenícolas, têm sido criados produtos que conservam os nossos órgãos para transplantes cerca de dez vezes mais tempo do que as outras soluções até há pouco conhecidas. Eis um exemplo, entre tantos outros, daquilo que poderemos lucrar se conhecermos melhor a natureza e o ambiente marinho. Outro: os corais têm uma poderosa imunidade adquirida face às doenças, são capazes de se protegerem melhor das infecções com as quais já tenham entrado em contacto, e resistem-lhes melhor. Não temos sequer ideia do que poderemos aprender com eles, do modo como os corais são capazes de nos ajudar a evitar doenças e a repelir infecções e maleitas, prevenindo pandemias próximas. Infelizmente, estamos a destruir os corais a um ritmo avassalador: as áreas mortas do oceano, definitivamente perdidas, ocupam já uma superfície de mais de 245 mil km2, equivalente à do Reino Unido. As estatísticas, aterradoras, constam de um relatório elaborado em 2021 pela Fundação Oceano Azul: apenas 13% do oceano permanece intacto; 90% das zonas de pesca mundiais estão totalmente exploradas (61%) ou sobre-exploradas (29%); cerca de 33% das capturas de peixe em todo o mundo são ilegais (leu bem: um terço do pescado global é ilegal); cerca de 10%, pelo menos, das capturas são desperdiçadas, sendo o arrasto o tipo de pesca com mais desperdício; interditar a pesca em alto-mar geraria grandes aumentos de lucro nas pescas (+ 100%), no rendimento nas zonas de pescas (+ 30%) e na conservação de stocks de peixes (+ 150%). Actualmente, já destruímos entre 30% a 35% dos habitats marinhos mais protegidos e 60% dos principais ecossistemas marinhos do mundo estão a ser usados de forma insustentável. No oceano inteiro, só cerca de 13% pode ser considerado “selvagem” tudo o resto já foi tragado, devorado, sujeito a intensa pressão e exploração humanas.
Há dias, foi revelada mais uma estatística vergonhosa e vil: Portugal é o segundo maior exportador mundial de carne de tubarão. Deveríamos dar o exemplo, tanto mais que, em breve, acolheremos em Lisboa a Conferência da ONU sobre os Oceanos, uma oportunidade única, irrepetível, para salvar o futuro do planeta. Entretanto, festejos populares, sardinhas e pão, manda a tradição. Mas, antes de comer uma sardinha, convém saber ao menos o que é uma sardinha.