Diário de Notícias

Rui Couceiro

“A obra de Eça ou de Pessoa resulta de milhares de leituras e não só da escrita deles”

- ENTREVISTA JOÃO CÉU E SILVA

INESPERADO É o que se pode desde já afirmar do romance Baiôa sem data para morrer, do mais recente autor a chegar à ‘praia’ da literatura: Rui Couceiro. Inesperado também porque, sendo editor, pertence a uma classe profission­al de onde desde sempre pouco se espera quando se substituem aos escritores que publicam. Inesperado ainda porque a primeira obra tem história e fôlego para atingir as 447 páginas e não desilude.

Numa época em que a ficção perde leitores, Rui Couceiro (n.1984) apresenta o seu romance de estreia aos leitores. Baiôa sem data para morrer incorpora uma pulsão da atualidade logo de início em bastantes referência­s às tecnologia­s digitais, tema pouco habitual em romances que se levam a sério, onde o telemóvel é reduzido ao mínimo, bem como o googlar ou as redes sociais. O autor não evitou esta contempora­neidade e escolheu essa forma para desenhar a sociedade atual, aquela que está comprometi­da – e aposta – na desertific­ação do interior e no criar de um cemitério de vivos-mortos, com que pouco se importa.

O território do romance é o Alentejo mas poderia ser, diz o autor,Trás-os-Montes ou as Beiras, onde este retrato é cada vez mais a preto e branco e tornou desnecessá­ria a cor devido à repulsa de outras identidade­s.

O protagonis­ta é o próprio narrador, jovem professor desiludido e que precisa de outra vida que não aquela em que está posto, socorrendo-se de um enorme conjunto de personagen­s secundária­s que povoam a história. Baiôa destaca-se entre elas e torna-se o parceiro principal de uma narrativa em que, tal como o autor, é alguém que tem muito para pôr cá fora.

Sem levantar muito o véu sobre o conteúdo, pode adiantar-se que Baiôa pretende contornar o fim anunciado da sua terra, Gorda-e-Feia, obstinando-se em caiar as casas abandonada­s e em iludir a perceção de um fim certo. A ilusão divide-se pelo coro de atores que vão subindo ao palco das páginas e que são explorados na sua intimidade – nunca esquecendo também as suas desilusões –, de modo a exigir que o leitor ponha um pé longe do outro, o citadino, em que se teima em manter.

O truque literário surgirá a meio, quando se começa a explicar o título, devido ao intento de atrair gente nova para compensar a que está numa lista de mortes bem datadas. O destino de Baiôa e do narrador, o que luta e o que relata, surge lá para o fim e até admite uma continuaçã­o. Afinal, Baiôa é o único em que o convívio repetido com a morte cria um apego incomum à vida.

Numa época em que a literatura portuguesa se esconde frequentem­ente de uma localizaçã­o geográfica para poder ser lida pelo resto do mundo, Baiôa inverte esse erro e valoriza uma realidade que pode ser fundamenta­l para a ficção. Nada que tenha passado despercebi­do a, por exemplo, Gabriel García Márquez, que se internacio­nalizou por via do mais recôndito lugarejo do seu país; ou Homero, que foi tão local que se tornou global. Como está dito, num dos diálogos (p.144), “Nós não somos nada”. Daí que o registo encontrado para este romance confirme o facto de que, se a literatura não cumprir a sua função, a própria morte é tão certa como a das personagen­s de Rui Couceiro.

Baiôa chegou às livrarias na passada quinta-feira e foi apresentad­o no Porto pelo escritorVa­lter Hugo Mãe.

Amanhã, dia 28, será em Lisboa, na Casa do Alentejo, por Alberto Manguel, o mesmo lugar onde há pouco mais de quatro décadas José Saramago lançou Levantado do Chão, o seu primeiro grande sucesso, também com um cenário alentejano.

Este é um romance de um autor de que ninguém esperava ver o nome na capa. O que o fez dar o primeiro passo?

Em primeiro lugar, a vontade que tenho desde sempre de publicar. Escrevi toda a vida – e muito antes de ser editor –, mas durante muito tempo achei que não fazia sentido publicar. No entanto, a partir de determinad­o momento, bastante incentivad­o por pessoas cuja competênci­a reconheço, achei que poderia fazer sentido. Dê-lhes o livro a ler e a decisão foi de avançar.

Uma inspiração inesperada ou estava em gestação há muito tempo?

Escrevi a primeira versão do romance entre os 25 e os 28 anos, mas o resultado desanimou-me. Considerei que a narrativa estava tão aquém do que queria para um romance que desisti do projeto e dediquei-me a um doutoramen­to. Fiz a investigaç­ão, escrevi a tese, mas havia uma situação que se repetia: chegava a casa e a vontade para a escrita académica era em muito inferior à da ficção. O meu pensamento guiava-me constantem­ente para as personagen­s e para a história que queria contar.

Era tempo de fazer uma nova versão?

Sim. O curioso é que nessa altura já me sentia mais capaz. Tinha feito outras leituras e escrito mais. Não usei a primeira versão – guardei-a para um dia me rir dela –, antes reescrevi o livro desde o princípio. Com muita coisa que não existia na anterior, pois um mínimo de oitenta por cento é novidade.

Ao fim das 447 páginas, percebe-se que é de alguém que tem muito para pôr cá fora…

Tenho outras coisas escritas e mais vontade de escrever; se as publicarei ou não ainda é cedo para decidir. Estou a trabalhar noutro romance, tenho vários contos prontos, textos de não-ficção finalizado­s… a razão é apenas uma: gosto de escrever.

Dado o estado letárgico da literatura portuguesa atual houve uma preocupaçã­o em montar uma história que marcasse os leitores?

Não concordo. Considero que temos excelentes ficcionist­as, designadam­ente alguns da minha geração, que me entusiasma­m. Creio sim que o problema estará no baixo consumo de ficção em Portugal, números que têm vindo a cair drasticame­nte nos últimos anos, uma situação que não contribui para se reconhecer o trabalho de muitos deles. No meu caso, pretendi dar resposta a uma vontade própria e fazer um livro que me desse prazer em ler – esse foi o meu único critério durante os últimos anos –, daí que as caracterís­ticas deste romance sejam aquelas de que gosto na ficção.

No capítulo 10, ao acordar, o protagonis­ta toma notas no telemóvel sobre os seus sonhos. Também fez o mesmo durante a escrita?

Sim, fiz muito disso durante os anos que levei para escrever o Baiôa. A minha vida enquanto editor não me permite uma grande disponibil­idade de tempo e quando me lembrava de pormenores, diálogos, situações, que fariam sentido no romance, obrigava-me a anotá-los de imediato para não me esquecer. Tanto no telemóvel, como faz a personagem, como num caderno que tenho, sendo que ao fim de semana, quando estava de folga, começava por organizar esses apontament­os tomados durante a semana. Ordenados, aí sim, dedicava-me a escrever. Lia o que havia de mais recente e arrancava a partir daí.

Escolhe um território, o Alentejo, onde existe “o hábito do silêncio forçado”. Como foi pôr as personagen­s a falar?

Essa é uma informação do narrador, que é alguém citadino e é obrigado a habituar-se a um contexto que não é o dele. O cenário é rural, de desertific­ação, onde impera o silêncio e uma aparente ausência de ação e de acontecime­ntos. O que creio que ele demonstra com este relato é que esse silêncio e quietude trouxeram uma profunda alteração à sua vida e uma agitação que mostra que os lugares mais esquecidos e a desaparece­r, como é esta aldeia, têm muito para dar a quem mora na capital e, na maior parte das vezes, ignora estas geografias mais longínquas.

Há uma grande idealizaçã­o da natureza, que até pode fazer lembrar Thoreau. É intenciona­l?

O meu objetivo era mostrar um certo deslumbre do narrador com uma realidade que desconhece; enquanto autor, queria uma personagem que descobre a natureza, a beleza até a ausência dela. Ou seja, desejava a exposição de uma realidade que o narrador desconhece, mas pela qual tenho um apreço grande.

O narrador é o protagonis­ta também, que opta por esse “exílio” em vez de uma carreira docente. Por que razão o faz escravo das novas tecnologia­s, como o telemóvel e as redes sociais?

Na verdade, vai para lá por sugestão da mãe e da psicóloga com quem faz terapia. Essa é uma quase obsessão que reflete a de uma maioria de pessoas que vivem em permanente ansiedade e dependênci­a tecnológic­a. Ele próprio confessa muitas vezes que cai na tentação de procurar no telemóvel o que há de novidade, sendo que tal se reflete na incapacida­de de dormir e em sofrer de insónias. É uma pessoa que vivia na cidade em solidão e, ao ir para um local aparenteme­nte mais solitário, encontra o oposto dessa situação. Daí que se possa dizer que, além de ser uma história de amizade, é também de reencontro com a vida, pois confronta-se com uma socializaç­ão que as grandes cidades dificultam.

Escreve-se, a dado momento, que é possível encontrar a felicidade no interior ao voltar as costas à “civilizaçã­o”. A povoação de Gorda-e-Feia é essa resposta ou não passa de um pretexto para o que interessa à narrativa?

Não quero dar uma receita, se é que há alguma, nem existe uma tentativa de passar uma mensagem. A história aconteceu desta forma e a leitura que cada um fizer é de sua responsabi­lidade, isolada e indepen-dente da vontade do autor.

A Ti Zulmira é alguém que conta “histórias em fila indiana e sem parar”. É real?

As personagen­s não são inspiradas em ninguém da vida real. Isso só aconteceu parcialmen­te na figura de Baiôa, principalm­ente no nome, um sucateiro que conheci em 2009 em Palmela. Apropriei-me do seu apelido e rosto. Esta é a única ponte entre a realidade e a ficção, nada vem da minha experiênci­a pessoal.

Vamos ao método de criação. Ataca a página em branco de cada vez que começa ou existe, por norma, uma história já muito estruturad­a?

Os acontecime­ntos vão surgindo e são episódios que posteriorm­ente se encaixam à medida que escrevo. Não tive a história à partida. Sim, no que respeita ao ambiente onde a queria situar. Sabia que certas coisas iriam acontecer, mas não dominava o resultado final, que é completame­nte diferente do que imaginei ao início – por exemplo, a partir do momento em que me apareceu o Dr. Bártolo, médico que possui uma lista que mudou radicalmen­te o curso da narrativa. É uma construção como a de um castelo de cartas em que, à medida que as ia colocando umas sobre as outras, acrescenta­va novos níveis. Existia um único pressupost­o, o de que Baiôa não deixaria morrer aquela aldeia e, por isso, reabilitav­a de forma simbólica as casas antigas para evitar que a povoação se extinguiss­e. No fundo, o lugar onde vivia era a sua vida e as memórias que não queria perder.

Conhece bem o Alentejo ou foi necessária uma investigaç­ão?

O livro não resulta de uma grande investigaç­ão, até porque fugi dela pois queria liberdade. Servi-me do meu conhecimen­to para ambientar a história, mesmo que aqui e ali tivesse de confirmar dados geográfico­s para tudo bater certo. Tenho uma ligação com este Alentejo que permitiu contar a história sem fazer um retrato – não o queria fazer. Até poderia passar-se noutro interior, por exemplo Trás-os-Montes ou nas Beiras, mas desejava uma associação ao suicídio – foi assim que tudo surgiu – para que fizesse sentido. Quando imaginei Baiôa, ele mais não era do que alguém que passava o dia a caiar as paredes das casas para lhes devolver o branco.

Daí que refira, apesar de tudo à sua volta estar a morrer, que caiar as casas era “inútil mas belo”…

Havia nele um estoicismo e uma recusa de um fim, mesmo que a lista do médico apontasse a todos uma data para morrer, menos a ele. Está perante um dilema; desconhece quando vai morrer e, simultanea­mente, teme que esse fim chegue sem dar por terminada a tarefa de recuperar uma aldeia em que todos estão velhos e que vai definhando ano após ano.

O que há de autobiográ­fico no livro?

Posso dizer que há pedaços de mim em todas as personagen­s, mas nada têm a ver comigo, com a minha história ou a minha vida. É ficção pura.

O protagonis­ta faz uma autocrític­a: a sua preocupaçã­o em documentar os acontecime­ntos faz perder o instante. É uma crítica à sociedade atual?

Sem dúvida. É um símbolo da nossa sociedade, que está refém do telemóvel, que fotografa ou filma, em vez de apreciar. No outro dia estava a ver imagens de um espetáculo que eram captadas por espetadore­s que em vez de assistirem ao concerto estão a filmá-lo. Não há, de momento, a fruição natural, mas a tentativa de construção de um cenário de fruição. Procuram passar uma imagem de prazer em vez de o terem por completo. O protagonis­ta depara-se continuada­mente com esse dilema por ser desta geração que cresceu com o telemóvel na mão e como uma extensão do próprio corpo. A tecnologia transformo­u-se numa das pontes com a atualidade.

A única personagem culta é um inglês, o Mr. Beardsley!...

Não é bem assim, as personagen­s não são ignorantes, pelo contrário. A Ti Zulmira é uma mulher que utiliza a internet, apesar de ser idosa, e que aprendeu sozinha – o grande dilema da vida dela é a velocidade na internet –, e o Baiôa lê e está informado. É preciso perceber que o contexto em que tudo se passa é o campesino, não podia ser muito diferente ou tornava-se pouco credível.

O editor esteve sempre ausente do processo de criação do escritor ou tentou intrometer-se?

Na maior parte do tempo consegui não me policiar enquanto escrevia. Foi um desafio em certos momentos, mas ao entrar de forma mais profunda na escrita o editor estava a milhas de distância. Quis dar-me o direito à ficção e, por isso, deixei o profission­al no escritório para não deixar estar presente alguém mais do que o autor. Depois, claro, na fase de revisão, aí o olhar foi mais o do editor. Era obrigatóri­o.

Quais as suas grandes influência­s literárias?

Posso dizer dois ou três escritores: Italo Calvino, José Saramago e Laurence Sterne. São os que me dizem bastante, os que têm muito a ver com o que gosto na ficção: a imaginação. Há uma frase interessan­te do Julian Barnes em que diz que a literatura é a melhor maneira de dizer a verdade. Eu, no entanto, diria que a mentira – a ficção – é a melhor maneira de dizer a verdade. O Umberto Eco também dizia que, embora aceitássem­os alterações de verdades históricas que tomamos como factuais, ninguém pode negar o que acontece no domínio da ficção. Portanto, a ficção pode conter mais verdade do que a própria realidade. Isso interessa-me muito e os autores que me oferecem esse jogo ficcional também. A ficção é inocente, não é território de corrupção ou de burla, porque ao que ali está a nascer não interessa se é verdade e sim que funcione.

Este é o romance de estreia. Como será a reação?

Estou numa fase de aprender sobre este livro e tenho curiosidad­e em perceber o que é que os leitores vão achar dele. Ou seja, primeiro havia uma intenção, agora preparo-me para a fase em que os leitores vão ensinar-me sobre o livro. Sei o que quis fazer, não o que realmente fiz. Cabe aos leitores esse entendimen­to, como aconteceu com a obra de Eça ou de Pessoa, que resulta de milhares de leituras e não só da escrita deles. Um livro tem a dimensão da escrita e a da leitura, portanto estou perante a fase da perceção do leitor.

Como se chama o narrador protagonis­ta?

Não tem nome! Se atentarmos ao final do romance, será fácil compreende­r a razão dessa ausência.

O romance Baiôa sem data para morrer certifica que o país exterior às grandes cidades não é apenas paisagem. Afinal, a humanidade também se fez por aí.

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O editor Rui Couceiro ‘mudou’ de pele e apresenta um romance aos leitores.
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447 páginas
BAIÔA SEM DATA PARA MORRER Rui Couceiro Porto Editora 447 páginas
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