Brasil. “Governo sem corrupção” acumula suspeitas de corrupção
JUSTIÇA Bolsonaro enfrenta, agora na Educação, investigação e prisão de ex-ministro. Escândalos, num total de 25 em quatro anos, vão da Saúde ao Ambiente e da relação com o Congresso à própria família.
A14 de outubro de 2020, a Polícia Federal brasileira fez uma operação, batizada Desvid-19, para apurar o desvio de recursos para o combate à covid-19. Numa busca, em Roraima, encontrou 30 mil reais nas cuecas do senador Chico Rodrigues, líder parlamentar do governo de Jair Bolsonaro. O escândalo não foi o mais grave no entorno do presidente eleito em 2018, mas, por ser o mais pitoresco, tornou-se emblemático. E a bandeira bolsonarista “governo sem corrupção”, agitada desde a campanha, sofreu, além do caso da cueca, mais 24 rasgões, segundo reportagens dos três maiores jornais do país, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, recolhidas pelo DN – resulta num caso de corrupção a cada mês e meio de governo.
No passado dia 22, por exemplo, Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação, foi preso por corrupção, tráfico de influência e outros crimes. Pastor evangélico, Ribeiro é suspeito de liderar, ao lado de dois outros pastores que visitaram oficialmente Bolsonaro 35 vezes, um esquema que distribuía verbas apenas a autarcas que oferecessem dinheiro – às vezes barras de ouro – em troca. O caso veio a público em março e levou à demissão do ministro, demissão aceite por Bolsonaro que, no entanto, disse à época ser capaz de pôr “a cara no fogo pelo Milton”. Agora, a três meses das presidenciais e 19 pontos atrás do rival Lula da Silva nas sondagens, o presidente recuou: “Ele que responda pelos atos dele”.
Ainda na Educação, foram reveladas, em abril, pelo jornal O Estado de S. Paulo uma licitação do governo, que pretendia comprar autocarros escolares quase pelo dobro do preço de mercado, e a autorização do ministério para a construção de 2000 escolas, a anunciar com pompa na campanha, mesmo sem dinheiro para concluir as obras, paradas há anos, de 3500. O Folha de S. Paulo noticiou, por sua vez, a aquisição de robôs de última geração sobrefaturados em 450% em escolas sem sequer água canalizada.
A pandemia
Na Saúde, uma comissão parlamentar de inquérito descobriu que o governo se preparava para comprar uma vacina, Covaxin, 1000% acima do preço, por ordem de Bolsonaro. E, para a aquisição de AstraZeneca, um funcionário do ministério cobrava um dólar para o próprio bolso por dose – morreram 670 mil brasileiros na pandemia. Acresce que um coronel do exército, como apurado por O Globo, aproveitou a pandemia para tentar aprovar, sem licitação, obras realizadas por empresas suspeitas em dois prédios.
Outras pastas foram atingidas pela corrupção: o ex-ministro do Turismo, Marcelo Antônio, desviou verbas eleitorais destinadas à cota feminina promovendo candidaturas falsas e, no Ambiente, o ex-ministro Ricardo Salles foi acusado pela polícia de integrar organização criminosa ao lado de desmatadores ilegais.
O “centrão”
Foi a aliança de Bolsonaro, pela própria sobrevivência política a um eventual processo de impeachment, com o “centrão”, o grupo de duas dezenas de deputados que troca apoio político a todos os presidentes por acesso ao orçamento, que dilatou a lista de desvios da sua gestão.
Aliás, Ciro Nogueira, titular da Casa Civil, uma espécie de gabinete do primeiro-ministro, e expoente do “centrão”, foi acusado em abril de cometer crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro por ter recebido subornos da construtora JBS para que o seu partido, o PP, apoiasse a reeleição de Dilma Rousseff em 2014. Bolsonaro não se pronunciou.
Na pasta do Desenvolvimento Regional, nas mãos do “centrão”, uma empresa concorreu sozinha, ou contra outras de fachada, por contratos de pavimentação de estradas na ordem dos 600 milhões de reais [mais de 100 milhões de euros] com o governo. No mesmo ministério, o crescimento na aquisição de camiões de lixo de 85 para 488, de 2019 para 2021, levantou suspeitas, para mais em cidades pequenas e pobres que precisam de semanas para encher os veículos, enormes e modernos. O antigo presidente Collor de Mello, aliado de Bolsonaro, foi um dos principais ideólogos da chamada Farra do Lixo. Tratores e outros equipamentos agrícolas, entretanto, foram comprados por preços 259% acima dos valores de referência.
No contexto do ministério da Cidadania, Bolsonaro liberou mais de um milhão de euros para ONG inativas de Daniel Alves e de outro futebolista. E o chefe de Comunicação do presidente é investigado por receber dinheiro na sua empresa de emissoras de televisão que o próprio contratava para o governo.
Os filhos
Em paralelo ao governo, a família presidencial também tem sido foco de esquemas de corrupção. O senador Flávio Bolsonaro, primogénito do presidente, é acusado de liderar desvios milionários de salários dos assessores. Nesse esquema, conhecido como Rachadinha, estão incluídos ainda o próprio Bolsonaro, o segundo filho dele, Carlos, e até a primeira-dama Michelle, destinatária de depósitos jamais explicados de Fabrício Queiroz, o suspeito de operar a organização criminosa.
Mais: desde a entrada na política, a família Bolsonaro multiplicou o seu património – tem 13 imóveis nalguns dos bairros mais caros do Rio de Janeiro, parte deles pagos em dinheiro vivo. Uma riqueza difícil de justificar apenas com os salários de parlamentares. E Jair Renan, quarto filho de Bolsonaro, é suspeito de tráfico de influência de lavagem de dinheiro para alavancar a carreira empresarial.
As interferências
Por outro lado, Bolsonaro age para obstruir investigações. Desde logo ao indicar a dedo o procurador-geral da República, Augusto Aras, ignorando a prática dos antecessores de deixarem a escolha a cargo dos seus pares no Ministério Público. Aliás, o presidente assumiu, em Conselho de Ministros, que interfere no Comando da Polícia Federal – trocou quatro vezes o diretor-geral – para blindar a família, o que levou à demissão de Sergio Moro. O pacote anticorrupção elaborado pelo ex-ministro da Justiça acabou, assim como uma lei que combate crimes de políticos contra a Administração Pública, esvaziado por ação do “centrão” no Congresso. E Flávio usou, durante meses, a estrutura do fisco brasileiro para investigar os inspetores da instituição que haviam denunciado o seu esquema.
Na prisão do ex-ministro da Educação na quarta-feira, 22, aliás, o delegado de polícia que apurou os alegados desvios do pastor, queixou-se de interferências nas investigações vindas da própria polícia. E, em telefonema para a filha tornado público, Milton Ribeiro deu a entender que Bolsonaro o avisou com semanas de antecedência da ação da polícia.