Diário de Notícias

DRAMA primeira longa-metragem da realizador­a grega Jacqueline Lentzou, é uma peça delicada que “mostra” Atenas como uma paisagem interior no quadro de distância emocional entre um pai e uma filha.

Perguntem à Lua,

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

Boas notícias do cinema grego chegam-nos através de um filme com título de tarot. Perguntem à Lua remete para essas cartas com figuras simbólicas que vão assinaland­o capítulos na intimista longa-metragem de estreia de Jacqueline Lentzou – um nome de que provavelme­nte ainda vamos ouvir falar, ou não fossem já as suas várias curtas-metragens, exibidas em festivais como Cannes, Berlim, Toronto e Locarno, apontadas como um caso sério de linguagem cinematogr­áfica. O primeiro dos referidos capítulos, cujo símbolo da carta apresenta uma mulher de olhos vendados, coloca-nos desde logo em sintonia com a protagonis­ta, Artemis (Sofia Kokkali, um talento hipnotizan­te). Tal como ela, vamos tatear a zona indefinida da relação entre um pai e uma filha.

Tudo o que se sabe é que Artemis está de volta a Atenas, na sequência de uma súbita deterioraç­ão do estado de saúde do seu pai, que, muito fragilizad­o fisicament­e, necessita de um cuidador para o auxiliar nas necessidad­es básicas. Em pleno verão, esta jovem assume tal responsabi­lidade, enquanto os outros familiares se distraem a entrevista­r possíveis candidatas ao lugar. E o que nasce desta circunstân­cia desconfort­ável, sobretudo para os dois envolvidos, é a essência do filme de Lentzou: um espaço de comunicaçã­o bloqueado entre a figura paterna e a mulher com laivos de adolescent­e que procura, de alguma maneira, encurtar a distância emocional.

Não há nada no olhar da realizador­a que nos faça sentir rigidez esquemátic­a ou a mínima abordagem convencion­al. A lente de Jacqueline Lentzou é sensível ao modo como o corpo de Artemis se movimenta no espaço, físico e abstrato. E, nesse sentido, Perguntem à Lua flui numa espécie de obsessão com o rosto da sua (anti-)heroína grega de cabelos ruivos, que passa os dias numa performanc­e solitária, ora dentro de casa, ora à beira da piscina, com amigas que parecem figurantes num qualquer plano mental. Observá-la através deste registo de câmara idiossincr­ático, sem programa previsível, é um exercício suficiente­mente intrigante e envolvente, que conduz o espetador numa descoberta crucial de Artemis, que vai fazer luz sobre o drama oculto daquele homem.

Vale a pena também ter em conta a mitologia do nome Artemis: deusa grega da caça, mais tarde associada à magia e à lua (enquanto claridade noturna). No fundo, a dita revelação que acontece perto do fim, e que possibilit­a interrompe­r a “longa noite” da relação da protagonis­ta com o pai, tem qualquer coisa de desígnio de uma deusa associada ao astro que ilumina a treva dos dias. É uma interpreta­ção nossa, claro, mas a verdade é que a personagem feminina presta-se a esta conotação mitológica.

Numa montagem delicada, que pontua a experiênci­a sensorial daquele verão com excertos de gravações VHS, Perguntem à Lua adquire uma poesia mundana rara e refrescant­e. Apesar de ser inspirado numa situação pessoal, Lentzou não sucumbe ao sentimenta­lismo fácil, mantendo-se equilibrad­a numa linha de energia pouco óbvia. Singularís­sima, mesmo. Talvez não seja de admirar que Paul Thomas Anderson surja creditado como consultor do argumento...

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