Terapia com... Harrison Ford
Apesar de, tecnicamente, Jason Segel ser o protagonista de Terapia Sem Filtros, o principal deleite desta nova série está num velho Harrison Ford de postura seca e humor mordaz. Dos mesmos criadores do êxito Ted Lasso, eis um convite para a psicoterapia s
Nos filmes e séries, os psicólogos ou psicoterapeutas costumam ser personagens secundárias, por vezes anónimas, que se apreciam pela discrição, sensatez e pelo modo como ajudam o paciente a encontrar, passo a passo, o caminho para resolver aquilo que não está bem na sua vida. A regra de ouro consiste em não interferir de forma direta, mas aconselhar. Por outras palavras: não estamos habituados a pensar neles como meros humanos que têm os seus próprios problemas, e que nem sempre são capazes de aplicar a si as orientações que dão aos outros. É mais ou menos desse conflito entre o profissional e o humano que nasce a série Terapia Sem Filtros (Shrinking, no original), agora disponível na Apple TV+, com Jason Segel na pele de um terapeuta que perdeu a fé no livro de estilo do seu ofício, depois de passar por um desgovernado período de luto – o seu superior no Centro de Psicoterapia, interpretado por Harrison Ford, não acha graça à brincadeira...
Concebida por Brett Goldstein e Bill Lawrence, dois dos criadores de Ted Lasso, em parceria com Segel, Terapia Sem Filtros é menos confortável do que esse outro sucesso protagonizado por Jason Sudeikis, desde logo porque fazer comédia com questões de psicologia não vai bem com todas as sensibilidades (mesmo que o drama ainda faça parte desta fórmula). Tudo começa com Jimmy (Segel) a queimar os últimos cartuchos da sua angustiada má-vida, acompanhado por duas profissionais do sexo na piscina de casa, às tantas da madrugada. Ele está de luto pela mulher e não sabe como partilhar essa dor com a filha adolescente, que, perante a irresponsabilidade do pai, tornou-se mais próxima da vizinha do lado; espécie de mãe substituta.
Nesse primeiro episódio temos Jason Segel, basicamente, a ser Jason Segel, com tiques um tanto estapafúrdios que estabelecem a sua condição de homem quebrado, a tentar desajeitadamente reerguer-se. Ele imita o Drácula, tal como o fazia na comédia Um Belo Par... de Patins, ele exagera a postura desengonçada numa corrida de longa distância, em que deita os bofes pela boca... Enfim, não é defeito, é feitio.
E quando volta ao consultório com uma nova resolução terapêutica, no mínimo, radical, não há ninguém que o pare: num só dia, encoraja uma paciente a deixar o marido abusivo, caso contrário não lhe dá mais consultas, e leva um jovem veterano do Afeganistão (com stress pós-traumático) a descarregar a agressividade no ringue de uma academia de boxe. Ao longo dos episódios há outros exemplos de ética questionável do “justiceiro da psicanálise” (como passa a autodenominar-se), mas talvez o mais arriscado seja o ato de acolher na sua própria casa este último paciente.
Em resumo, Jimmy torna-se um profissional alegremente irresponsável enquanto procura endireitar a sua própria vida familiar e sarar amizades. Mas Shrinking está para além dele, e isso só se percebe nos episódios seguintes, quando as personagens de Harrison Ford e Jessica Williams – Paul e Gabby –, os outros terapeutas do Centro, começam a roubar tempo de antena ao suposto protagonista.
O valor essencial da série tem muito que ver com este peso dos atores secundários num argumento que realmente os faz crescer na dimensão... psicológica. Gabby/Williams é uma absoluta delícia, aquele tipo de personalidade solar que anima e espicaça qualquer um com energia para dar e vender.
Já Paul/Ford, no exato oposto, lança a imagem do velho seco e mal-humorado, com o dom da piada imprevisível. Ele é uma espécie de mentor de Jimmy, muito pouco recetivo à sua leitura criativa do código deontológico, mas é com Gabby que estabelece a química mais divertida: a certa altura, ela passa a dar-lhe boleia para o trabalho no seu novo carro, e esses percursos matinais dão azo a um grande momento musical dentro do veículo.
De resto, Ford equilibra a balança com uma nota dramática. A sua personagem está a lidar com um diagnóstico de Parkinson e esconde essa condição da sua própria filha – um quadro não muito diferente da comunicação frágil que Jimmy mantém com a filha adolescente.
O jogo interno de Terapia Sem Filtros passa por estas matérias não-resolvidas, que em algum momento terão de ser enfrentadas.
O mais curioso é que não se trata de uma série com evolução bem definida, de episódio para episódio. Não há uma consciência clara da direção que a história está a tomar. Há, sim, uma grande confiança nas personagens e na sua qualidade disfuncional, mais uma vez, cabendo a Harrison Ford garantir uma certa aura de sabedoria terapêutica, uma gravidade cool, mas inquestionável, quando as relações à sua volta precisam de um qualquer incentivo.
Sem dúvida, falamos de uma aura que se reflete na imagem que um dos criadores, Bill Lawrence, deu à Associated Press acerca do ambiente no set: “Toda a gente tem medo de dizer-lhe para fazer qualquer coisa. [Risos] Mas é muito divertido trabalhar com ele. Cada cena fica arruinada – pelo menos um take – por mim ou por um dos atores que não resiste a dizer a meio: ‘É o Harrison Ford! Que loucura!!’” Eis a eterna questão do carisma.
Mas, segundo Brett Goldstein, isso não o coloca necessariamente acima do resto do elenco: “Ele é também um ator muito generoso e faz parte deste conjunto. Não é como se quisesse assumir o controlo. Ele encaixa-se neste mundo, interpreta a personagem, desaparece nela.”
De facto, antes da aguardada estreia de Indiana Jones e o Marcador do Destino (30 de junho), e depois do regresso de Ford às lides televisivas com a série 1923, dificilmente teremos um ponto de encontro tão franco com a estrela octogenária. Uma presença sem artifícios, com bons conselhos para dar e um brilhozinho nos olhos.
O jogo interno de Terapia Sem Filtros passa por estas matérias não-resolvidas, que em algum momento terão de ser enfrentadas.