Diário de Notícias

A Contenda do Rio Minho: o diferendo fronteiriç­o que sela as pazes no palco

- TEXTO JOSÉ MIGUEL SARDO dnot@dn.pt

A Companhia de Teatro de Braga e o Centro Dramático Galego apresentam, em Compostela, uma obra cómica do século XVII sobre um conflito transfront­eiriço entre habitantes de Valença e Tui. Um diferendo por cotas pesqueiras que, mais de três séculos depois, volta a ilustrar os desencontr­os entre Portugal, Espanha e a Galiza, de Inês de Castro à linha de alta velocidade.

Um fidalgo português sedento de guerra desce às margens do Minho para desafiar as regras tradiciona­is que regem a pesca no rio partilhado entre os habitantes de Tui e de Valença. Assim começa a história de A contenda dos lavradores de Caldelas, a povoação galega ribeirinha de águas revoltas onde decorre a ação da obra. Escrito em 1671, o também conhecido como Famoso entremez sobre a pesca no Rio Minho – uma comédia popular – é considerad­o o primeiro texto teatral escrito em galego, mesmo que só tenha sido representa­do uma vez nos últimos três séculos, há exatamente 50 anos. A estreia da peça em Santiago de Compostela, no passado dia 26, depois de esta ter sido brevemente exibida em Portugal e Espanha, constitui para o diretor do Centro Dramático Galego e encenador da obra, Fran Núñez, “uma forma de saldar uma dívida histórica face a um texto fundamenta­l do teatro galego”.

Uma dívida que se estende também, num texto sobre um conflito que termina em reconcilia­ção, à História das populações que desde há séculos partilham uma área geográfica que só as linhas de fronteira parecem separar. “A ação da obra passa-se num momento histórico de tensão entre os dois lados, há cerca de 20 anos que tinha acabado a última guerra, o que quer dizer que o Rio Minho se tinha transforma­do numa fronteira fortificad­a e altamente militariza­da”, lembra Fran Núñez, que sublinha que o texto está longe de ser uma apologia da guerra e do conflito.

“Desde o início, que o fidalgo começa mal a negociação ao querer triplicar as redadas do lado português, quando a tradição estabeleci­a que os pescadores dos dois lados fossem alternando, uma redada para cada lado. E é precisamen­te nesse momento que uma história aparenteme­nte simples, uma comédia, começa a ganhar diferentes níveis de interpreta­ção”.

O também ator na peça propõe agora um espetáculo dividido em duas partes, durante o qual a representa­ção do texto original de dez páginas é precedida por uma versão revista e atualizada por Núñez e uma equipa transfront­eiriça de atores, ao som da língua portuguesa e galega, de fado, música eletrónica e música tradiciona­l. Tanto o encenador galego como Rui Madeira, o diretor da Companhia de Teatro de Braga, que coproduz o espetáculo, reconhecem que, quer na versão atualizada, quer naquela do texto de 1671, a contenda é apenas uma das dimensões de uma obra com muitas outras leituras.

“Esta peça fala daquilo que nos une e desune, como o Rio Minho, e parece-me uma oportunida­de fantástica para perceber que, três séculos depois, os problemas mantêm-se intactos quando se fala de fronteiras e das relações entre pessoas nas zonas de fronteira”, sublinha Madeira, que mantém desde há vários anos uma relação ativa com o Centro Dramático Galego.

A batalha que termina em festa

“Começamos o espetáculo a dizer que o Rio Minho é uma fronteira natural, que não é assim tão natural, uma vez que os habitantes dos dois lados se continuam a encontrar à beira do rio como um ponto de encontro e não um ponto de separação”, lembra Fran Núñez, cujo teatro público que dirige tem entre as suas missões a cooperação com Portugal e a Lusofonia ao abrigo de uma lei autonómica galega. Se, na obra, se relata como os portuguese­s são derrotados à paulada pelos camponeses galegos irados – a começar pelo fidalgo português, que rapidament­e bate em retirada com vários dentes partidos –, a história está longe de ter um desfecho triunfal para qualquer um dos lados, com camponeses galegos e portuguese­s a selarem as pazes numa grande festa.

Há toda uma simbologia que se soma ao facto de a coprodução luso-galega ter inaugurado o Festival de Teatro Clássico de Almagro em 2021, um dos mais importante­s certames do género em Espanha, a convite de Portugal, o país em destaque nessa edição. Uma escolha natural para Rui Madeira, também porque, “esta obra tem todos os condimento­s de um teatro popular, de um teatro divertido, de comunidade e com esse olhar mordaz sobre as relações que a política e a sociedade geram nesta zona peninsular da Europa”.

Poucas semanas após a apresentaç­ão em Almagro e pouco após a pandemia ter levantado barreiras em algumas estradas fronteiriç­as entre Portugal e a Galiza, a peça representa­va-se excecional­mente na ribeira de Caldelas, nos finais de agosto de 2021, numa cena ao ar livre com as águas do Minho como pano de fundo, num ambiente de romaria nortenha. “Não posso dizer que todos os espetáculo­s são iguais, pois essa representa­ção foi algo muito especial, cheio de simbolismo, uma vez que celebrávam­os os 350 anos da criação da peça no mesmo local onde decorre a ação. Foi o maior espetáculo ao ar livre na Galiza durante a pandemia, com mais de 600 espetadore­s – montou-se uma festa à volta do teatro, com a senhora que vende as rosquilhas e a vendedora de polvo cozido também presentes. Foi um momento em que este teatro, sobre uma contenda, acabou por ser um ponto de união e de encontro de gente vinda de Portugal e da Galiza”, lembra Núñez, que prossegue atualmente outras colaboraçõ­es com teatros portuguese­s como o D.Maria II e o Teatro São João do Porto.

Rui Madeira encontra-se atualmente em Santiago onde prepara a estreia de uma das partes do espetáculo Shakespear­e em Roma, coordenado por Fran Núñez e que reúne na mesma representa­ção várias peças do bardo inglês em redor do tema da guerra. Uma colaboraçã­o próxima que, durante a produção de A contenda dos pescadores de Caldelas, passou por longas discussões sobre as diferenças e os pontos comuns entre portuguese­s e galegos para poder adaptar o texto do século XVII a uma atualidade, na qual rios e cotas pesqueiras continuam a ser fruto de tensões transfront­eiriças.

“Quando começámos a trabalhar sobre este texto, desde as nossas primeiras conversas que este texto foi construído em torno da ideia de que ‘Inês perdeu a cabeça e Pedro perdeu o comboio’ e isto está na peça, porque também aborda o debate e a disputa sobre o comboio de alta velocidade entre Porto e Vigo e a história das relações entre Portugal e Espanha, desde a nossa fundação enquanto país e a importânci­a da Galiza nessa fundação e é por isso que falamos da cabeça de Dona Inês de Castro – uma galega –, cujo desamor tinha algo de político”, ironiza Madeira.

A língua que não é uma fronteira

A peça vai estar patente até domingo 5 de fevereiro no Salão-Teatro de Santiago de Compostela, à espera de novas datas ao longo das cidades do chamado “eixo atlântico”, a eurorregiã­o que reúne hoje o norte de Portugal e a Galiza.

Rui Madeira rejeita atribuir um caráter regionalis­ta a esta obra, lembrando que, entre as diversas leituras que a comédia popular permite, está também o tema universal das fronteiras, “e de uma fronteira que é um rio como tantos outros rios – como o Dniepre, na Ucrânia –, locais onde uma situação excecional ou de tensão acaba por separar aqueles que sempre conviveram dos dois lados”.

Núñez confessa também que, na aparente batalha, acabou igualmente rendido a outras pistas presentes na obra, como a luta de classes ou o tema da distância entre “os que mandam” e as realidades locais. No texto original, depois da batalha campal e da fuga do fidalgo, um camponês português reconhece “ter vergonha” do comportame­nto do nobre, antes de propor uma trégua sob a forma de um pé de dança. Uma parábola do fidalgo português e do camponês galego repescada 350 anos depois, sem outra agressão que não seja a da ironia mordaz – uma caracterís­tica comum que domina tanto o humor português como a chamada “retranca” (ironia) galega.

Em palco, atores portuguese­s e galegos, mas também moçambican­os ou brasileiro­s confrontam-se, mais do que se enfrentam, também numa língua com várias variações. “Penso que ainda hoje a grande diferença entre o português e o galego mantém-se nesses detalhes, no modo de entender o mundo, que se exprimem em cada língua; mesmo que sejam línguas próximas ou quase a mesma, não deixam de ser duas formas de entender o mundo, mas que nunca nos isolam”, sublinha o diretor do Centro Dramático Galego para quem A contenda, tanto no texto original, como na adaptação moderna que se apresentam agora em Santiago de Compostela, contém também uma importante mensagem política: “Ao fim e ao cabo a História, como se conclui através deste espetáculo, não é um objeto imóvel, pois o que recordamos da História pode-se sempre reescrever ou modificar.”

“Ao fim e ao cabo a História, como se conclui através deste espetáculo, não é um objeto imóvel, pois o que recordamos da História pode-se sempre reescrever ou modificar”, diz o encenador Fran Núñez.

 ?? ?? Um momento da peça, que foi o primeiro texto teatral integralme­nte escrito em galego.
Um momento da peça, que foi o primeiro texto teatral integralme­nte escrito em galego.
 ?? ?? Fran Núñez Encenador
Fran Núñez Encenador
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal