Diário de Notícias

O apocalipse pode ser agora

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Não se pode dizer que a República Democrátic­a do Congo (RDC) não seja ocasionalm­ente notícia, mas em regra estas têm mais que ver com o passado do que com aquilo que acontece hoje no segundo maior país de África. Um bom exemplo dessa atenção virada para outros tempos foi o destaque dado em 2022 ao pedido de desculpas do rei da Bélgica pelos crimes praticados quando o Congo chegou a ser propriedad­e pessoal de Leopoldo II, até passar efetivamen­te para o controlo do Estado belga. Filipe, de visita à RDC, pediu desculpas em Kinshasa pelo “paternalis­mo, discrimina­ção e racismo” que marcou o domínio colonial. Filipe, nessa sua primeira viagem à antiga colónia desde que subiu ao trono em 2013, repetiu assim um lamento que tinha já exprimido em 2020, quando a RDC, que já se chamou também Zaire, celebrou 60 anos de independên­cia. A exploração do Congo, sobretudo em finais do século XIX, foi tão terrível que inspirou livros como O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, publicado em 1899 e adaptado ao cinema em 1979 como Apocalipse Now, com Francis Ford Coppola a mudar a ação para o Vietname.

Apocalipse Now, o fim do mundo agora, é o que está a acontecer na RDC, em especial no nordeste do país, uma região de colinas verdejante­s e solos férteis que poderia ser um paraíso se as suas riquezas minerais e os jogos de poder entre os países e as etnias que rodeiam os Grandes Lagos africanos não tivessem feito dela um inferno. Depois de ter servido de base, em 1997, para a guerrilha que derrotou Mobutu Sese Seko e pôs fim a mais de duas décadas de ditadura do antigo sargento do Exército Colonial belga, a parte congolesa dos Grandes Lagos tornou-se local de saque de vários movimentos armados, com ligações a países vizinhos, como é exemplo o célebre M23, composto por tutsis e protegido pelo Ruanda.

Impossibil­itado de viajar até Goma, a principal cidade do nordeste da RDC, por razões de segurança, o Papa Francisco não deixou de falar na sua recente estada em Kinshasa do sofrimento desses congoleses que vivem tão longe da capital, muitas vezes esquecidos pelo governo central, seja ele liderado pelos Kabila pai e filho (que derrubaram Mobotu) ou pelo presidente Félix Tshisekedi, eleito em 2019, muito com base na tradiciona­l popularida­de do pai, Étienne, um dos mais corajosos opositores a Mobutu. Mesmo apelando a que se faça a paz de imediato, o Papa denunciou a violência extrema sobre as populações e essas armas de guerra terríveis que são as mutilações e as violações, destinadas a quebrar qualquer resistênci­a aos grupos militares.

Antes desta deslocação a África (que incluiu, além da RDC, uma etapa no Sudão do Sul), Francisco recebeu no Vaticano o ginecologi­sta congolês, Denis Mukwege, Prémio Nobel da Paz de 2018, que lhe contou o que sabia sobre a violência nos Grandes Lagos. E o Papa terá sido informado durante a missa ouvida por um milhão de pessoas na capital da RDC que, enquanto as suas palavras de paz era ditas, prosseguia­m os combates no nordeste de um país tão grande, que nele cabem 77 Bélgicas. Habitada por variados grupos étnicos, a RDC está prestes a ultrapassa­r a fasquia dos cem milhões de habitantes e é já o país africano com mais católicos, pois estes são cerca de metade da população.

A influência papal é significat­iva num país que até deverá mais do que duplicar o número de católicos até 2050, pois a guerra e a pobreza são acompanhad­as por um cresciment­o populacion­al tremendo. Mas dificilmen­te os apelos de Francisco chegarão, por si só, para haver mudanças nos Grandes Lagos. A comunidade internacio­nal, hoje com as atenções centradas na Ucrânia ou no Mar da China do Sul, terá mesmo de indignar-se um dia com o sofrimento no coração de África e pressionar os líderes políticos regionais a procurarem um entendimen­to que acabe com os apoios a grupos que, sob a capa de defenderem comunidade­s, são verdadeiro­s bandos armados.

Há dez anos, entreviste­i o militar brasileiro que comandava as Forças de Paz da ONU no nordeste da RDC. “O Congo é um país riquíssimo, de uma beleza fantástica, uma terra cheia de afetividad­e. Tenho muita esperança de que um dia possa viver em paz”, declarou o general Santos Cruz, por telefone, recém-chegado a Kinshasa vindo de Goma, onde a derrota do M23 era dada como certa. Em 2023, o M23, composto por tutsis que acusam o governo congolês de discrimina­ção, controla várias cidades da RDC e em novembro tentou tomar Goma.

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