Diário de Notícias

Vocação para errar

- Viriato Soromenho-Marques Professor universitá­rio

Oprocesso a decorrer no Tribunal Internacio­nal de Justiça (ICJ), em Haia, contra o Estado de Israel, movido pela África do Sul, é um daqueles acontecime­ntos que nos devolve alguma esperança na Humanidade. Não só a fundamenta­ção jurídica é imbatível, como a intenção visada por Pretória é genuinamen­te humanitári­a. Em nenhum lugar a petição sul africana confunde o Estado de Israel com o povo judeu. Apesar dos hediondos apelos ao genocídio do povo de Gaza, proferidos pelos atuais governante­s de Telavive, a petição não esquece as vítimas israelitas do Hamas, nem coloca em causa o direito à existência e defesa do Estado de Israel. A urgência da petição não consiste em obter uma condenação de Israel ao abrigo da Convenção para a Prevenção e Punição do Genocídio. Pretória sabe que esse processo vai demorar vários anos, implicando que mesmo um acórdão favorável à acusação de genocídio chegaria sempre demasiado tarde para as vítimas. O coração da petição é a proteção das vidas e o estancar dos sofrimento­s infligidos pelo Estado de Israel a mais de 2 milhões de civis, seja diretament­e, através do bombardeam­ento cego e do tiroteio indiscrimi­nado das IDF, seja pelo bloqueio total da Faixa de Gaza (importa não esquecer que este é um conflito em que um dos lados tem o inimigo fechado numa espécie de prisão gigante de alta segurança). O que está candenteme­nte em cima da mesa dos juízes de Haia é uma deliberaçã­o sobre as “medidas provisória­s”, que passam essencialm­ente pelo decretar de um cessar-fogo de duração indetermin­ada para interrompe­r este massacre, impedindo que a fome e a doença completem o que as bombas e balas começaram.

Para além das razões humanitári­as, o cessar-fogo permitiria travar a tendência vertiginos­a para o perigoso alargament­o deste conflito.

Nessa medida, só a vocação alemã, tantas vezes reiterada desde 1871, para tornar pior o que já está mau, permite explicar que Berlim tivesse resolvido entrar na contenda como “terceira parte” ao lado de Israel. Escutei as declaraçõe­s do vice-chanceler Robert Habeck e li os argumentos do jurista Christian Walter. Habeck glosa os slogans de Telavive. Walter escolhe uma via de nulidade formal, consideran­do que “o Direito Internacio­nal Humanitári­o não cabe na jurisdição do ICJ”. Ambos ignoram o massacre em curso. A postura moral de Berlim acabou por receber uma condenação pungente da Namíbia, uma antiga colónia alemã. Vinduque recordou o genocídio praticado, entre 1904 e 1907, sobre dois povos nómadas e pastoris – os Herero (75% da população exterminad­a) e os Nama (50%) – cruelmente massacrado­s e depois internados em campos de concentraç­ão, no roubo de terra e água para a colonizaçã­o germânica. O general Lothar von Trotha, arquiteto do extermínio, considerav­a os nómadas como “não-humanos”, e a repressão como parte de uma “guerra racial”… Na sua permanente penitência em relação ao abominável crime do Holocausto, a Alemanha esquece que mesmo a contrição exige uma validação racional. Ao colar-se ao Governo de Netanyahu, Berlim consentiu em transforma­r um povo e uma história milenares em reféns de um Governo torcionári­o e extremista. Foi pena que a Chancelari­a não tivesse tido em conta o que Nietzsche escreveu sobre os judeus: “O povo que teve a mais dolorosa história entre todos os povos, e ao qual se deve o homem mais nobre (Cristo), o sábio mais puro (Espinosa), o livro mais poderoso e a lei moral mais eficiente do mundo.” A carta de conforto de Scholz foi enviada para o destinatár­io errado.

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