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Joacine Katar Moreira entrou no Parlamento com a promessa de que iria dar ‘um pontapé no estaminé’. Entre o pontapé e o tiro no pé, no final foi mau para todos. Foi mau para o Livre, que teve de renascer das cinzas e fazer tudo para que os portugueses se
o júri se referia)”. À revista Visão, Joacine afirmou ter passado “um ano traumatizada com essa acta”, que achou “cruel”, tanto mais que todas as juradas eram suas amigas e uma delas, Inocência Mata, da Faculdade de Letras, até tinha estado uns anos antes no seu casamento.
Em 2015, Rui Tavares telefonou-lhe, desafiando-a a entrar nas listas do Livre, no 22.º lugar, dificilmente elegível. Deu a cara pelo partido nas europeias de Maio de 2019, mas logo ali discordou que, nos cartazes, a tivessem posto em posição subalterna, a olhar embevecida para o cabeça-de-lista. Nas legislativas de 2019, exigiu aparecer sozinha nos cartazes e outdoors, pois entendia possuir legitimidade própria, já que fora ela a escolhida através do método de “primárias abertas”, no qual todos podem eleger e ser eleitos candidatos do Livre, mesmo não sendo militantes (cf. o Regulamento das Primárias Abertas do Livre). No rescaldo do furacão Joacine, a direcção do partido disse que iria rever os seus processos internos, adiantando, contudo, que manteria as “primárias abertas”, da qual o Livre tinha sido pioneiro (o PS adoptou-o em 2014, e, apesar de discordar desse método, foi com ele que António Costa acabou por derrotar Seguro com 69,6% dos votos.)
Tem sido observado noutros países que a escolha dos candidatos pelas bases dos partidos, em primárias abertas ou fechadas, nem sempre leva a resultados virtuosos e, pelo contrário, é um factor de promoção dos mais extremistas e radicais. Devem-se às primárias, em larga medida, o triunfo da linha Brexit no seio do Partido Conservador, a manutenção de Jeremy Corbyn como líder trabalhista, a captura do Partido Republicano por Donald Trump, a escolha de François Fillon como candidato presidencial em França, a desastrosa designação de Liz Truss como chefe do Governo britânico (cf. Max Fisher, How Political Primaries Drive Britain’s Dysfunction, The NY Times, de 23/10/2020).
No caso de Joacine, uma defensora ardente do conflito e da polarização políticos (“a polarização é necessária. Estamos numa altura em que não dá para evitar a polarização, com o avanço absoluto da extrema-direita e o ressurgimento de ideologias outrora vencidas”, afirmou ao Novo, de 26/3/2023), o problema não residiu, ou não residiu apenas, no seu radicalismo, ou sequer na imposição de uma agenda excessivamente apostada nas questões raciais ou de género, em detrimento de outras bandeiras do Livre (v.g., ecologia, europeísmo). O problema de Joacine Katar Moreira – e do Livre – foi ter entendido que a eleição por pridas lhe conferia uma legitimidade pessoal e intransmissível, só dela, dando-lhe carta branca para correr em pista própria sem dar satisfações a ninguém, sobretudo à direcção do seu partido. Aliás, numa entrevista ao Diário de Notícias, de 11/8/2019, disse-o com todas as letras: “Não há uma direcção partidária a escolher quem é que faz parte das listas, há eleições primárias, qualquer pessoa pode ser escolhida por qualquer pessoa, isto é uma enorme ferramenta democrática. Não precisamos de estar submetidos e obedientes a uma direcção partidária.”
Numa personalidade com outras características, essa “enorme ferramenta democrática” poderia ter funcionado. No caso dela, a designação através de primárias conjugou-se, em tempestade perfeita, com uma sobranceria e um pedantismo intelectuais que raiavam o autismo. A desconexão da realidade chegou ao extremo quando mandou afixar por toda a Lisboa gigantescos outdoors com o seu rosto e os dizeres “Portugal Interseccional”, indiferente ao facto de 99,99% dos portugueses não saberem sequer o que isso quer dizer, nem alcançarem a subtileza teórica desse conceito de importação estrangeira. Com isso, e além de demonstrar um completo alheamento em relação ao país onde vive e ao seu povo, Joacine não pretendeu mobilizar ninguém ou alcançar o voto de quem quer que fosse, mas tão-só fazer um statement da sua densidade e superioridade académicas, esquecendo-se, nesse transe, que não estava a falar para os seus pares ou a escrever um paper, nem a prestar provas no ISCTE.
Ao fim de pouco tempo, já os jornais davam conta do mal-estar entre Joacine e a direcção do Livre, começado ainda durante a campanha, quando ela exigiu aparecer sozinha nos cartazes do partido, e prolongado logo que foi eleita, quando assumiu o exclusivo da escolha dos quatro colaboradores do seu gabinete de apoio. Um deles, Rafael Esteves Martins, um rapazito de Queluz que antes militara na Maçonaria e na JCP, chegou a superá-la no narcisismo, exuberantemente mostrados no célebre episódio da saia, que ele disse ser moda corriqueira em Londres, onde viveu, e, em simultâneo, uma “mensagem política”, que, é óbvio, acabou por ofuscar todas as outras e a própria deputada (a revista Nova Gente, de 26/10/2019, chamou-lhe, não por acaso, “o homem que roubou o protagonismo da deputada no dia de estreia no Parlamento”). Martins teve os seus 15 minutos de fama, até foi ao programa do Goucha, mas depois quis recatar-se, não sem antes ter-se envolvido noutro incidente burlesco, quando chamou os serviços de segurança da Assembleia para acompanharem “a senhora deputada” ao gabinete, pois esta, enquanto dava uma entrevista à Al-Jazeera, fora assediada pelos jornalistas portugueses, com quem se recusava a falar. Os repórteres parlamentares, sintomaticamente, queixavam-se da “soberba” do assessor e, na verdade, Martins mostrava ser um deslumbrado parvenu académico que, por estar a estudar em Oxford, usava um esforçado accent etoniano para discorrer com altivez sobre o provincianismo dos portugueses e dos demais povos meridionais, o que fazia dele, claro está, um caricato produto do colonialismo cultural britânico, como foi oportunamente notado pela humorista Joana Marques num hilariante episódio de Extremamente Desagradável.
“Eu nasci para estar ali”, afirmou Joacine sobre a Assembleia da República, quando se abriu o conflito com o Livre. Simplesmente, enquanto ali esteve, as trapalhadas e as confusões foram tantas que acabaram por obnubilar o trabalho feito, patente em diversos projectos e iniciativas, sobre coisas tão variadas como a defesa da Tapada das Necessidades, a vacinação covid da comunidade migrante, a protecção contra o Sars-Cov-2 entre os idosos nos lares de terceira idade ou a instituição do dia 25 de Setembro como Dia Nacional da Sustentabilidade. Por culpa própria ou alheia, tudo isso foi ignorado pelos media e pelos cidadãos, talvez porque a deputada preferisse falar de questões doutra natureza, mais polémica e simbólica, como a remoção de pinturas racistas do Salão Nobre de São Bento ou a trasladação das ossamárias de Sousa Mendes para o Panteão Nacional.
As divergências com o partido agudizaram-se quando se absteve num voto de condenação à agressão israelita a Gaza, o que lhe mereceu uma reprimenda pública pela direcção do Livre, que a fez entrar “em reflexão”, segundo o seu assessor. Pouco depois, disse que, durante três dias, tentara contactar, sem sucesso, a direcção do partido sobre qual deveria ser o seu sentido de voto nessa sensível matéria, explicação que levou Rui Tavares a declarar-se “perplexo”. De facto, não parecia muito provável que Joacine Katar Moreira, tão ciosa da sua autonomia de candidata eleita em “primárias abertas”, fosse contactar a direcção do Livre para saber que posição tomar num voto sobre a Faixa de Gaza. Segundo disse depois, estava “muito mais à esquerda” do que o seu partido, o que torna ainda mais incompreensível aquela abstenção.
Mais tarde, e na questão fulcral e decisiva da alteração da Lei da Nacionalidade, uma das grandes bandeiras do Livre, entregou o seu projecto fora de prazo, facto tanto mais estranho quanto Joacine afirmara repetidas vezes, em campanha, que aquele seria o primeiro projecto que iria apresentar em São Bento. Gerou-se um enorme imbróglio, pelos vistos existia um “acordo de cavalheiros” que a novel deputada ignorava, o projecto do Livre acabou sendo admitido “a título excepcional”, mas o pior é que, segundo vários juristas, ele padecia de inconstitucionalidades grosseiras, nomeadamente por criar um regime diferenciado e mais favorável para os cidadãos nascidos entre 1981 e 2006 (cf. Público, de 29/11/2019).
A gota de água terá sido o facto de Joacine não ter revelado como iria votar na generalidade o Orçamento do Estado para 2020, o que levou a direcção do Livre a retirar-lhe a confiança política. Em retaliação, o assessor Rafael gracejou, dizendo que retirava a confiança no partido, Joacine passou a não-inscrita e entrou em registo contra mundum. Acusou tudo e todos, desde a “pouca informação” que recebia da Assembleia, passando pela comunicação social e pelos comentadores que a criticavam (chegou a dizer que Daniel Oliveira fazia o jogo da extrema-direita…), até, naturalmente, o seu próprio partido, do qual chegou a insinuar que a atraiçoara por ela ser uma mulher negra (cf. Fernanda Câncio, Que pontapé, Joacine”, Diário de Notícias, de 30/11/2019).
Ao som do Fado Bicha, Joacine Katar Moreira entrou no Parlamento com a promessa de que iria dar “um pontapé no estaminé”. Entre o pontapé e o tiro no pé, no final foi mau para todos. Foi mau para o Livre, que teve de renascer das cinzas e fazer tudo para que os portugueses se esquecessem daquela mulher-meteoro. Foi mau para Joacine, que disse que houve uma “campanha generalizada” contra a sua pessoa e que aqueles dois anos em São Bento tinham sido “muito violentos” para si e para a sua família (tem uma filha pequena, Anaís Leonor), adiantando, contudo, que voltaria a fazer a experiência, que teve convites de outros partidos para regressar a São Bento (diz que não foi o BE, o PCP ou o MAS: então, que partidos?) e, inclusive, que não desdenha a hipótese de, no futuro, constituir uma força política para defender as suas causas. O pior de tudo, contudo, e acima de tudo, foi para o país: a gritaria entre Joacine e o Livre caiu que nem mel para os seus inimigos da direita extrema (não por acaso, o Chega subiu de um para 12 deputados nas eleições de 2022) e contribuiu, e muito, para adiar um debate sério, cada dia mais urgente, sobre o racismo em Portugal, que muitos teimam em negar, mas que a realidade impõe aos olhos de todos. Não é o racismo do passado, caro aos intelectuais doutorados, mas o actual e bem vivo, presente na gente real, de carne e osso, que vemos nas paragens dos autocarros, a caminho dos bairros das periferias, ou nas obras da construção civil, nos jovens negros atrás dos balcões de fast food, nas mulheres das limpezas dos escritórios. Gente como as irmãs de Joacine do lado materno, que, por terem crescido no bairro social do Vale da Amoreira, na Margem Sul, não passaram do 12.º ano, ao contrário dela e dos seus irmãos de Alverca, do lado paterno, que conseguiram chegar à universidade.
Joacine regressou à academia, tem dado algumas entrevistas e, parece, mantém-se muito activa nas redes sociais. Ainda há pouco, voltou a incendiar os ânimos ao ter escrito no Twitter que “há uma forma portuguesa de estar no mundo. É a desfaçatez.” Com isso, radicalizam-se as atitudes e as opiniões, conquistam uns e outros o palco e a fama que tanto desejam, concentram-se os debates em questões assaz simbólicas, mas laterais (brasões, pinturas de salões nobres, ossadas em panteões), enquanto o essencial do racismo, esse, permanece por discutir e resolver. No Portugal do século XXI, ainda há quem sofra na pele o drama de ter nascido com a pele errada. A questão, porém, pouco interessa aos activistas narcisistas, mais apostados no fulgor das suas pessoas do que na sorte dos que deveras sofrem. E assim vamos vivendo.
*Prova de vida (29) faz parte de uma série de perfis
As representações cinematográficas do Holocausto tendem a gerar confrontos de ideias e conflitos argumentativos que determinam a sua perceção mediática, seja no sentido da consagração, seja alimentando a recusa, ou mesmo a demonização, de determinados filmes. No centro de tais dinâmicas surge, quase sempre, a questão da possibilidade (ou impossibilidade) de representação do horror programado e perpetrado pelos nazis.
Sabemos que, com frequência, tais confrontos se apresentam enquadrados pela herança de uma frase do filósofo alemão TheodorW. Adorno – “Escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro (…)” —, muitas vezes tratada como aforismo filosófico desligado do seu contexto original (e também da história posterior da própria frase, suas leituras e interpretações). O certo é que isso leva a que os problemas envolvidos passem a ser reduzidos a uma dicotomia normativa e, mais do que isso, “figurativa”. Em jogo estaria o que se “pode” ou “não pode” mostrar, nomeadamente na abordagem (fílmica, insisto) dos campos de concentração.
A vastidão e a densidade de tudo o que está envolvido aconselha a não tentar sequer resumir num mero texto de jornal aquilo que tem sido tratado numa quantidade infinita de livros, ensaios, palestras e, claro, objetos de cinema. Direi apenas que a questão da “visibilidade”, em particular na abordagem do extermínio de milhões de seres humanos nas câmaras de gás, depende, também ela, de uma história de muitos contrastes.
Citemos apenas dois filmes (a meu ver admiráveis). Conhecemos, assim, pontos de vista que sempre condenaram o projeto cinematográfico de A Lista de Schindler (1993) porque o seu realizador, Steven Spielberg, se atreveu a “figurar” aqueles lugares de morte; ao mesmo tempo, o filme húngaro O Filho de Saul (2015), de László Nemes, lidando com os mesmos cenários, foi maioritariamente elogiado pela contundência da sua encenação. Que acontece, então? Sou levado a interpretar essa diferença de tratamento como expressão de um velho preconceito anti-americano e, sobretudo, anti-Hollywood, cego à complexidade da história do cinema (americano e não só). Muito aquém de qualquer reflexão filosófica, estamos perante uma rejeição demagógica: porque é a pátria do entertainment, Hollywood não poderia gerar filmes“sérios”.
Por perversa contradição, nada disto é estranho ao simplismo imposto por uma ideologia de raiz televisiva que, atualmente, tem a sua expressão mais agressiva no aparato cénico do Big Brother. Tratar-se-ia de conceber o mundo das imagens como um super-mercado do “visível”: não interessa o que se dá a ver, ou como se dá a ver, basta manter o fluxo histérico das imagens como uma coleção que se vai repetindo e mantendo através de “fenómenos” descartáveis.
Que a classe política evite enfrentar o poder cultural de tais práticas imagéticas – e dos seus efeitos na própria “cena” política –, eis o que diz bem da fragilidade dos valores que, apesar de tudo, preservam a nossa vital sociabilidade. Para lá das radicais diferenças do contexto em que agora o relemos, o pensamento angustiado de Hannah Arendt ecoa no nosso quotidiano de forma ambígua, mas muito perturbante: “O que é o sentido da política? Para as pessoas que em todo o mundo se sentem ameaçadas pela política, e entre as quais as melhores são as que conscientemente se afastam da política, a questão mais importante que se põe e põem aos outros é: A política terá ainda qualquer sentido?” (in Promessa da Política, tradução de Miguel Serras Pereira, ed. Relógio D’Água, 2007).
A estreia do filme A Zona de Interesse, realizado por Jonathan Glazer a partir do romance homónimo de Martin Amis (tradução de JoséVieira de Lima, ed. Quetzal, 2015), é um acontecimento que nos faz reencontrar a herança deste novelo histórico, levando-nos a reformular uma questão fundadora da própria história do cinema: que vemos naquilo que um filme nos dá a ver?
Digamos, para simplificar, que os tempos e os espaços da história não se confundem com o fluxo de um convencional noticiário televisivo organizado como uma colagem “novelesca” de protagonistas (sobretudo da política e do futebol). Em A Zona de Interesse, a história diz-se, antes de tudo o mais, através da proximidade (dir-se-ia uma forma dantesca de “colagem”) da casa familiar de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, e dos pavilhões do campo – o paraíso imaginado como abstração coexiste, para lá de um simples muro, com o inferno da Solução Final concebida pelos nazis.
Essa proximidade existe como cenografia que decorre de um sistema ideológico de desumanização. De quem? Do outro? Do judeu? Sem dúvida, mas há também uma auto-desumanização daquele que aplica a sentença de morte desse outro. Assim, a banalidade do mal que Arendt inventariou e desmontou não se esgota na banalidade do
Agesto de aniquilamento desse outro, já que começa na banalização dos gestos dos próprios responsáveis do extermínio – leia-se ou releia-se o seu Eichmann em Jerusalém (tradução de Ana Corrêa da Silva, ed. Tenacitas, 2013).
Christian Friedel, o ator que interpreta Höss, falou dessa desumanização – e do horror que através dela se multiplica – numa entrevista ao site IndieWire (13 dez. 2023). De acordo com o trabalho de preparação que desenvolveu com o realizador, era importante mostrar Höss sem o esgotar num qualquer estereótipo de “criminoso”. Diz Friedel: “Observamo-lo como uma pessoa vulgar e aborrecida na sua vida quotidiana, como um pai interessado na natureza e coisas desse género. O trabalho está sempre presente no seu pensamento, mas não vemos as coisas através dos seus olhos – os seus olhos são frios.” São sinais de uma lógica fascista e de fascização que o filme de Glazer expõe com invulgar precisão: o congelamento dos olhares banaliza a morte do outro, a realidade passa a ser habitada como mecanismo inevitável, tendencialmente indiferente.