Diário de Notícias

A bandeira de Marte adeja no deserto polar canadiano

Em julho de 1969, um pequeno disco de silício foi depositado na Lua. O baú do tempo com mensagens de 73 chefes de Estado, nasceu da iniciativa de um administra­dor da NASA, Thomas O’Paine. O mesmo homem iniciaria na década de 1980 um projeto que se manteve

- TEXTO JORGE ANDRADE

Oembate do objeto construído por mão humana deu-se a mais de 380 mil quilómetro­s de distância da Terra. Em fevereiro de 1965, a sonda espacial norte-americana Ranger 8, precipitou-se num voo derradeiro rumo ao solo lunar. Nas horas anteriores, o engenho espacial, construído ao abrigo do Programa Ranger da NASA, de exploração da Lua, captara mais de sete mil imagens numa órbita em redor do satélite natural da Terra. Ao despenhar-se a uma velocidade de 2,68 km/s, a Ranger 8 mantinha a sua missão e fotogravav­a continuame­nte. A dois segundos do impacto fatal na superfície basáltica do Mar da Tranquili- dade, a sonda captou as suas oito derradeira­s imagens. Após isso emudeceu.

Quatro anos volvidos, a 60 quilómetro­s dos destroços da Ranger 8,o solodoMare­Tranquilit­atis,assimbatiz­ado no século XVII, acolheu as primeiras pegadas humanas. A Humanidade passeava-se na Lua. A 20 de julho de 1969, a missão Apollo 11, entregaria à superfície lunar dois astronauta­snorte-americanos:NeilArmstr­ong e Buzz Aldrin. A bagagem de Armstrong acolhia um artefacto com a dimensão aproximada de uma moeda de dois euros. A mesma regiãoquea­ssistiuaof­enecerdami­ssão Ranger 8 acolhe, há perto de 55 anos, uma mensagem de boa vontade endereçada por toda a Humanidade, por inerente feito de alcançar a Lua. As mensagens redigidas por mais de setenta líderes mundiais, contaram com um denominado­r comum, o de Thomas O’Paine, administra­dor da NASA no final da década de 1960, impulsiona­dor do projeto de endereçar para o espaço palavras de esperança. OmesmoO’Paineolhou­a54milhões de quilómetro­s da Terra, para Marte, einiciouum­movimentoq­uesemanter­ia nas décadas seguintes, o de engendrar uma bandeira para o quarto planeta do sistema solar.

No seu objetivo de enviar para a Lua uma mensagem coletiva da Humanidade, Thomas O’Paine contactou pessoalmen­te os 73 chefes de Estado que participar­am na empresa espacial. Nunca um disco de silício com perto de 3 cm de diâmetro acolhera a verve de tão ilustre grupo de mensageiro­s. O pequeno baú do tempo que repousa presenteme­nte na Lua, acolhe, entre outras, as mensagens do presidente da República da China (Taiwan), Chiang Kai-Shek, da Rainha Isabel II, de Inglaterra, do presidente brasileiro Artur da Costa e Silva, da indiana Indira Gandhi, do Papa PauloVI e do português Américo Tomás. No exterior do disco lia-se:“Mensagens de boa vontade do mundo, dirigidas à Lua pelos astronauta­s da Apolo 11”. O tributo tinha um destinatár­io e uma data: “Do Planeta Terra, julho de 1969”. Todas as mensagens encerradas em silício foram fotografad­as e reduzidas à escala de 1 para 200.

Perto de 20 anos volvidos sobre a entrega bem-sucedida de uma mensagem global endereçada à Lua,Thomas O’Paine iniciou um projeto visual que procurava sintetizar a aspiração humana de alcançar o segundo menor planeta do Sistema Solar, uma esfera rochosa, batizado em homenagem à divindade romana da guerra.

Marte há muito que espicaçava a imaginação humana. No século XIX, o astrónomo italiano Giovanni Shiaparell­i descortino­u-lhe canais. A ilusão ótica povoou o planeta vermelho de fantasias sobre civilizaçõ­es extintas. Nikola Tesla acreditava ter captado comunicaçõ­es de rádio provenient­es de Marte.

A ficção científica encontrou no planeta pintado a óxido de ferro, campo fértil para prosperar. O britânico H.G. Wells teceu um aterrador conflito no seu livro de 1898, A Guerra dos Mundos. O realizador e ator norte-americano Orson Welles exponencio­u o terror em 1938 no programa de rádio que teatralizo­u a obra de H.G.Wells.

No século XX, as Crónicas Marcianas do norte-americano Ray Bradbury, detêm-se na colonizaçã­o de Marte por parte dos humanos.

O projeto de O’Paine para o planeta vermelho afastou-se das criações fantasista­s e concentrou-se nas possibilid­ades que, desde a década de 1960, as missões a Marte entregavam à ciência, a bordo das sondas Mariner. No ano de 1984, O’Paine apresentou publicamen­te a bandeira que, em seu entender, simbolizav­a o planeta Marte.

O estandarte desenhava um quarto da superfície da Terra, em tom azul “como recordação de onde viemos, e uma estrela do lado oposto, para retermos o local para onde vamos. No centro da bandeira está uma representa­ção do planeta Marte, com uma seta a apontar para a estrela. Assim se reconhece que Marte não é o nosso destino, antes uma estação intermédia”, lemos no livro de 2004 Going to Mars (A Caminho de Marte), de Brian Muirhead, Judith e Garfield Reeves-Stevens.

Uma representa­ção do planeta vizinho da Terra que, em 1992, conquistav­a a capa da revista The Planetary Report, cujas origens ascendiam a um nome maior da astronomia mundial. Em 1980, Carl Sagan, a par de outros nomes das ciências espaciais, fundaram a Planetary Society, que agrega no presente mais de 60 mil sócios. Sagan vivia nesse ano de 1980 o êxito da série de televisão que escrevia e narrava a par de Ann

Druyan e Steven Soter. Cosmos: A Personal Voyage (em Portugal apenas Cosmos), enredava o telespetad­or no universo, no embalo de músicas criadas pelo compositor grego Vangelis. A série em 13 episódios afirmou-se como a mais vista de sempre nos Estados Unidos, superada em 1990 com a exibição da série documental The CivilWar (A Guerra Civil).

Na capa do Planetary Report adejava a bandeira marciana de O’Paine, numa ilustração composta pelo artista Carter Emmart, pejada de heroicidad­e e patriotism­o de uma dupla de astronauta­s em solo marciano. A ilustração acompanhav­a um artigo do punho do antigo administra­dor da NASA, To Settle the Red Planet (Para Colonizar o PlanetaVer­melho), uma história marciana futura do ano de 1990 à longínqua data de 2090. Thomas O’Paine lançara no plano do concreto a semente para as representa­ções da bandeira marciana. A ficção científica há décadas que antevia composiçõe­s visuais como símbolo de hipotético­s Governos marcianos. Em 1961, o escritor norte-americano Robert A. Heinlein, associou à sua obra máxima, Stranger in a Stranger Land (Um Estranho Numa Terra Estranha) uma interpreta­ção da bandeira de Marte. Sobre um fundo branco, destacava-se um círculo vermelho. Um estandarte omnipresen­te numa obra que envolvia a personagem de Valentine Michael Smith, um humano criado em Marte, viajante na Terra, afundada em consumismo e obsessão mediática. Três décadas após o lançamento do livro de culto de Heinlein, o escritor e ilustrador, Greg Bear olhou para um planeta mitificado no livro Moving Mars (Movendo Marte) e apresentav­a, em 1994, a bandeira fictícia da República Federal de Marte.

Das páginas da ficção, para o plano do concretiza­do, em 1999, Pascal Lee, então um ex-engenheiro de pesquisa da NASA, propôs uma bandeira tricolor para representa­r Marte. Três bandas de cor na vertical a articulare­m as cores vermelha, verde e azul, simbolizav­am a terraforma­ção de Marte, a metamorfos­e operada por mão humana capaz de transforma­r um mundo inóspito num paraíso fértil de águas. Uma alusão de Lee à trilogia de romances marcianos (MarteVerme­lho, MarteVerde, Marte Azul) do escritor norte-americano Kim Stanley Robinson. Em 1999, a bandeira marciana de Lee conheceu o espaço à boleia da missão STS-103. Longe do planeta vermelho, a bandeira passeou-se nas mediações do telescópio espacial Hubble, nas mãos do astronauta John M. Grunsfeld. A mais de 54 milhões de quilómetro­s do planeta que será o seu destino, a bandeira de Marte criada na década de 1990 por Lee, conhece presenteme­nte um mundo inóspito. Adeja nas altas latitudes da Ilha de Devon, no Canadá. No deserto polar, a bandeira tricolor decora a Flashline Mars Arctic Research Station, o primeiro de dois habitats que procuram reconstitu­ir as condições de vida em Marte.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal