O terror de autor de Gabriel Abrantes
Gabriel Abrantes estreia-se sozinho na realização de longas-metragens com A Semente do Mal, conto de terror elevado já nos cinemas. Ao DN conta como foi desconstruir uma série de conceitos deste género. Filme de artista, pois então!
Isto não é só um filme de terror. É um jogo de caça entre a fórmula e a subversão. O cinema de terror e o “filme de artista”. A Semente do Mal é o resultado dessa experiência, uma “investigação” de Gabriel Abrantes, o cineasta português do inclassificável Diamantino (Prémio da Semana da Crítica / Cannes 2018) e de uma série de curtas que foram sempre a muitos géneros sem nunca sair de um olhar exterior ao cinema convencional – trata-se de um artista plástico.
Desta vez, vai ao gatilho do cinema de terror americano para falar sobre neurose psicossexual num conto de identidade, incesto e imagem. Em inglês chama-se Amelia’s Children e é precisamente a história de Amélia, senhora do norte de Portugal que vive numa casarão remoto na floresta. Finalmente vai receber em casa o filho perdido que lhe foi roubado ainda bebé. Chama-se Ed e vem dos Estados Unidos para conhecer a família que julgava perdida, entre os quais o seu irmão gémeo. Aos poucos, o “brother Ed” e a sua bela namorada Riley, percebem que há algo de possivelmente errado numa mansão de vozes e ruídos. Aos poucos surge a pista de uma história de bruxas...
Escrito com um humor, no mínimo, safado, A Semente do Mal faz da sua perversão um abanão ao preconceito da formatação do que são as regras de um filme de terror americano. Sentido de irrisão, sem mais nem menos e numa abordagem que reflete sobre o tempo e as marcas, a beleza e os seus preconceitos – daí nasce algo parecido com um baile de freaks, nem que na banda-sonora haja a experiência de Jobim e da “girl from Ipanema”.
“Penso muito na divisão da arte e entretenimento. Qual a arte do entretenimento? Como é que o entretenimento também pode ser arte? Isso talvez tenha a ver com o facto de ter crescido nos EUA onde as coisas estão melhor misturadas. E este é um filme entre géneros. Aliás, os filmes que mais gosto estão sempre a torcer géneros. Por exemplo, quando Lynch faz Veludo Azul está a fazer um filme surrealista e erótico, mas, ao mesmo tempo, é um policial... Com A Semente do Mal queria muito aquele tom que pode ser cómico, mas igualmente de terror”, confessa Gabriel Abrantes numa toada de entusiasmo ativo.
O cineasta-artista faz questão também de revelar que uma das suas intenções foi abordar questões como a do mito da juventude: “Depois de fazer o filme, fiz um exercício sobre quais os temas que ele propõe e acho que se acaba por falar aqui de um conflito entre gerações. Acima de tudo, é uma história de uma mãe protagonista que não quer ser ultrapassada pelos filhos. De alguma forma, há nela uma espécie de narcisismo geracional, coisa que pode ser vista com o presidente Biden – o que é que um senhor de 80 e tal anos está a fazer como presidente? Ou mesmo a alternativa, o Trump, que não está muito longe dele... Esta geração, os boomers, recusa abdicar. Querem o poder e são vampíricos. E há gente dessa que usa o sangue dos filhos para se rejuvenescer num processo de plasma. Por outro lado, esta Amélia, tem aquela coisa de não deixar os filhos crescer, algo que é um pouco um mito tuga, sobretudo nessa cena de os filhos ficarem muito tempo a viver com os pais.”
A Semente do Mal tem fatores que o distanciam de tudo o que está feito no cinema português. Uma segurança de estilo ampliada uma escala de produção que tem uma patine vistosa, efeitos visuais ao nível de Hollywood e uma trabalho de caracterização que é, só em si, um dos trunfos do filme. Isso e atores com uma presença de comando incrível, em particular a norte-americana Bridgette Lundy-Paine, que não há muito contracenava com Keanu Reeves em Bill e Ted Salvam o Universo, e uma Anabela Moreira a desfrutar de uma personagem que assusta e diverte como o Frank de Dennis Hopper em Veludo Azul – quanto menos se falar dela, maior será o efeito surpresa.
Entre Portugal e os EUA, o realizador não acredita em piscar de olho íntimos nas personagens dos gémeos, logo ele que é visto por cá como corpo “alien” do nosso cinema: “Ao contrário de outros amigos, que foram para fora, não me senti complexado quando regressei – não tenho nada aquela coisa de dizer que consegui alcançar outras fronteiras para além do pequeno Portugal. Digo mais, não tenho nenhuma ansiedade de Portugal ser pequenino. Estive na universidade em Nova Iorque e podia ter ficado lá. Mas levei muito a peito os textos carpe diem de Werner Herzog, tipo: se não tens uma câmara, rouba uma câmara! Foi aí que decidi ir para Trás-os-Montes, local que conheço intimamente e tentei filmar na aldeia da minha avó, onde passei os verões da minha infância. Desde então fui ficando... sem ansiedades”.
A seguir, vai continuar a produpor zir o seu cinema depois de ter sido produzido em Diamantino por Maria João Mayer. Uma produção sempre a meias com Margarida Lucas, sua parceira de vida: “Foi incrível trabalhar em família. O Nolan também trabalha com a mulher, tal como o Sam Levinson e o Zack Snyder. Há um historial por alguma razão: é mais fácil seguir uma linha de autor. Curti muito a sintonia com a Margarida”.
A seguir, estão os dois a preparar o lançamento na América deste filme, uma estreia que se prevê para março com a pompa da distribuidora conceituada Magnolia.
Enquanto isso, Abrantes vai filmar na América, precisamente, a sequela de Les Extraordinaires Mésaventures de la Jeune Fille de Pierre, curta-metragem sua que misturava animação com imagem real, levando esta personagem animada do Louvre para o MoMA, em Nova Iorque, desta vez em formato longo. Também na América está prevista outra aventura no seu conceito de terror chique inspirada numa experiência pessoal numa igreja presbiteriana. Antes, na Gulbenkian há ainda este ano uma obra de encomenda sobre a falta de ímpeto revolucionário no contexto das celebrações dos 50 Anos do 25 de Abril.