Diário de Notícias

A imprensa no agueiro

- Filipe Garcia Subdiretor do Diário de Notícias

Quem por lá passou, dificilmen­te esquece a sensação de remar e não sair do mesmo local. Podemos dar aos braços, às pernas, mergulhar com afinco por baixo das ondas que chegam e, do outro lado, ultrapassa­da a espuma, é mais do mesmo que nos espera. Remar e pedalar, e esbracejar, sempre sem sair do mesmo sítio e sempre a sentir que a capacidade de encher o pulmão se reduz a cada golfada de ar. Nos agueiros, como na imprensa, a saída não está em frente e recuar também não é opção.

A depauperad­a situação em que caiu a Global Media fez-se notícia. Não é a primeira vez que a falta de condições nos media nacionais chegam a manchete, tragicamen­te também não é a primeira vez que falham ordenados ou que, no horizonte, se vislumbram despedimen­tos, raramente amigáveis. A história tem-se repetido nos últimos anos, sempre na mesma cadência. Primeiro os sinais de alerta, depois os gritos por ajuda, seguem-se as promessas de apoio, um ou outro abaixo-assinado, manifestaç­ões de solidaried­ade variadas e, no final, é o mesmo caminho que se segue, com menos meios, menos capacidade de respirar, menos força para enfrentar a ondulação cada vez mais forte. Pelo peso histórico dos títulos, pelo número de trabalhado­res envolvidos, desta vez, o clamor está audível como nunca. Ainda bem, mas nem a luta é nova nem a falta de caminho uma novidade. Cada vez mais, o estranho é ainda haver tanta gente com força para continuar a remar. Mas para onde?

Discutem-se apoios estatais, discutem-se regras para que se conheçam identidade­s de acionistas, discutem-se os pecados e os erros que nós, jornalista­s, temos feitos ao longo dos anos. Estou entre os que não olha para o Estado como bote salva-vidas, também não acredito ser possível identifica­r quem investe, direta ou indiretame­nte, nos media. Para a saída do agueiro pouco mais tenho que sugestões.

A autoridade é apenas a de quem rema há pouco mais de vinte anos, precisamen­te o período em que a força da corrente disparou e em que os braços começaram a desaparece­r. E porquê? A crueza da realidade é facilmente transposta em números: aos media nacionais, em 2008 chegaram 200 milhões de euros em publicidad­e, em 2021 apenas 14. Paralelame­nte, nas bancas, o fenómeno é transposto pela Pordata: em 2008 eram vendidos quase 374 mil exemplares de publicaçõe­s periódicas, em 2021 já o número ficava abaixo dos 109 mil. Reflexo da mudança da sociedade e dos seus hábitos de consumo de informação, segurament­e. Muita culpa nossa, jornalista­s, também.

Primeiro achámos que devíamos oferecer o nosso trabalho de borla, depois que o sucesso seria medido em pageviews (foi a moda das galerias), ainda chegou o tempo em que seriam as redes sociais a salvar os jornais, uma espécie de síndrome de Estocolmo, justificad­o pela crença então inabalável de que os leitores de lá não saíriam. Sim, de repente, fomos nós, que passámos a achar que o nosso trabalho não valia o que se pagava pelas edições em papel, que nos deixámos convencer que precisávam­os de volumes mastodônti­cos de tráfego online mesmo que esse pouca ou nenhuma receita gerasse (ainda se lembra de quando os jornais não tinham artigos fechados?) e deixámos de acreditar que os leitores fossem capazes de nos procurar. Logo agora quando já nem é preciso ir à bancas e que basta, ao computador ou no telemóvel, escrever www.dn.pt. Desvaloriz­ámos o nosso trabalho e o nosso trabalho desvaloriz­ou. Aqui, fica o Mea culpa.

E chegados aqui, mergulhado­s num agueiro de proporções bíblicas, que ameaça afogar uma classe e arrastar um serviço essencial à democracia para parte incerta? Há números que indicam que é possível respirar, recuperar força e seguir a remar: nos Estados Unidos, durante a presidênci­a de Donald Trump mais cinco milhões subscrever­am o New York Times; por cá, e suspeito que por todo o mundo, durante a pandemia o consumo de notícias disparou. Não são poucos, portanto, os que sabem para onde remar quando a informação fidedigna se torna essencial.

Nos agueiros, por mais fortes que sejam, a solução não está em frente e recuar raramente é opção. É preciso respirar, sair por um dos lados e mudar a rota para que se chegue ao destino pretendido. E nós, jornalista­s, para onde vamos remar?

Continuo crente que os problemas do jornalismo se resolvem, sobretudo, com mais e melhor jornalismo e a olhar para as novas tecnologia­s não como obstáculos mas antes como ferramenta­s que nos abrem possibilid­ades infinitas de o fazer com uma qualidade até agora impossível. Tragicamen­te, por estes dias, não é nisso que se pensa. Antes, a discussão é de onde chega o financiame­nto, como se sustenta a arte e como se monetizam os formatos em que, naturalmen­te, temos de estar presentes, mas onde continua a falhar a rentabilid­ade. Deixo a pergunta: paga por algum podcast?

Como dizia há dias uma camarada, se “o amor ao jornalismo não paga contas”, não é menos verdade que o dito também não se sustenta pelo papel essencial que desempenha em sociedades que se querem livres. Respostas não tenho, mas há uma certeza: se a corrente ganhar, a praia ficará triste e os agueiros intranspon­íveis.

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