Março depende do cartão de eleitor jovem
Uma democracia forte e saudável pode retirar sentido do que parece caleidoscópico. Sendo que, mesmo no pior cenário, subsiste a prorrogativa de voltar a ir a votos, e agradecer o facto de termos o pior dos regimes, tirando todos os outros.”
Há dois anos, enquanto Rui Rio queria acreditar que iria ser primeiro-ministro e António Costa edificava, tijolo por tijolo, num desenho lógico, o que viria a ser a mais frágil maioria absoluta da nossa democracia parlamentar, as universidades assistiam a uma disputa bizarra. Habituado a gozar de posição dominante nesse meio, ao ponto de certas faculdades aparentarem ser as suas “Academias de Alcochete” – ou do Seixal, ou do Olival, em prol da isenção clubística –, o Bloco de Esquerda identificou um alvo a abater. O adversário, para recorrer ao eufemismo, era a Iniciativa Liberal, ainda que a startup partidária, alicerçada na defesa intransigente das liberdades, com a económica na vanguarda, parecesse estar tão distante quanto a Terra está de Marte.
“Por que é que os liberais te perseguem?” perguntava o panfleto que os bloquistas distribuíram para evitar que a impressionável juventude portuguesa sucumbisse ao programa do partido liderado pelo seu então deputado único, João Cotrim de Figueiredo. No grafismo, inspirado no da Iniciativa Liberal, sobressaíam várias letras “i” antropomórficas, todas com dentes de fora tirando a que fumava um cachimbo, aparente símbolo do capitalismo. Contrapunha-se que, não obstante os liberais dizerem que “é o mercado que deve resolver os problemas da economia”, que “sem intervenção do Estado os preços são justos e o salário tem o valor certo”, que “o Ensino e a Saúde devem ser negócios privados”, e que “os impostos sobre os mais ricos devem baixar”, não passavam de “agentes dos milionários”, amigos dos que “assaltam os bancos de que são donos” e fãs do ditador chileno Augusto Pinochet. Sem esquecer o principal alerta à juventude: “Os liberais não se esquecem de ti. Querem que vivas pior do que os teus pais, porque esse é o ‘preço justo’.”
O panfleto não teve grande sucesso, pelo menos a avaliar pelas ocorrências de 30 de janeiro de 2022, pois a Iniciativa Liberal quadruplicou o eleitorado e passou de um para oito deputados. Já o Bloco de Esquerda perdeu metade dos votos que obtivera em 2019, bem como 14 dos seus 19 mandatos na Assembleia da República, ficando com a bancada reduzida a uma coordenadora abatida pela derrota e dedicada a gerir a saída, um líder parlamentar a tentar manter atividade legislativa com um quarto dos deputados da anterior legislatura – também minguou o número de funcionários, pois o partido teve de se adaptar à diminuição de receitas, tal qual as empresas que combate –, um deputado empenhado em substituir as ausências e outras duas parlamentares, por sinal irmãs gémeas, uma das quais seria eleita líder do partido.
Nas legislativas que se avizinham não se antevê tão notória disputa entre Bloco de Esquerda e Iniciativa Liberal, embora ambos possam melhorar ligeiramente o número de eleitores e de deputados. Mas o voto dos jovens continuará a ser potencialmente decisivo numas eleições em que não só se joga se AD ou PS ficam à frente, mas também se a balança do hemiciclo penderá mais para a direita ou para a esquerda. Ainda que os entendimentos pós-eleitorais pareçam mais um abismo do que uma complexidade, e por muito que o Chega procure um tripartidarismo como não existe desde 1985, quando o PRD, criado à sombra do ainda Presidente da República Ramalho Eanes, estraçalhou o PS de Almeida Santos.
No desfecho dessas duas disputas terão influência vários segmentos de eleitorado, desde os pensionistas que Montenegro quer recuperar, após uma década de apoio ao PS, canalizando o ressentimento pelos cortes de Passos Coelho, aos funcionários públicos e à classe média, que ambiciona mais salário na conta bancária sem abdicar de serviços públicos de qualidade. Mas ninguém deve menosprezar a importância dos jovens, aqueles que podem seguir o exemplo dos que já emigraram, prolongando o ciclo da mala de porão, ou acreditar em políticas que lhes deixem realizar os seus sonhos no país em que nasceram.
Por muito que se possa verberar os indícios de que os jovens com cartão de eleitor estarão inclinados a votar no Chega, e por mais razões além do combate à insanidade woke, tal como escolherão o PAN, e não só pela “ansiedade climática” autodiagnosticada, esses eleitores que fugirão ao partido que tem governado quase sempre, e à coligação que gostaria de o ter feito, devem ser ouvidos com atenção. E vistos como parte da solução, mesmo que seja tentador, e até satisfatório, catalogá-los como alienados ou idiotas úteis. Uma democracia forte e saudável pode retirar sentido do que parece caleidoscópico. Sendo que, mesmo no pior cenário, subsiste a prorrogativa de voltar a ir a votos, e agradecer o facto de termos o pior dos regimes, tirando todos os outros.