Diário de Notícias

O couple que é o motor da Europa

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Prova de que o Tratado do Eliseu de 1963, a formalizar a amizade franco-alemã, não foi mera oportunida­de para o presidente Charles De Gaulle e o chanceler Konrad Adenauer tirarem uma fotografia juntos, os embaixador­es franceses têm até hoje instruções claras para, mal assumam funções num país, se reunirem com o homólogo alemão. Se for no espaço de 48 horas tanto melhor.

Em Lisboa, essa cooperação desejada entre as embaixadas francesa e alemã tem a vantagem de tanto Hélène Farnaud-Defromont saber alemão como de Julia Monar falar francês. Aliás, ambas as embaixador­as decidiram assinalar há três dias em Lisboa o 61.º aniversári­o do Tratado do Eliseu, promovendo um encontro no Liceu Francês entre quem ali aprende alemão e os alunos da Escola Alemã que estudam francês.

Foi a oportunida­de para os jovens das escolas se conhecerem, também de fazerem perguntas às diplomatas sobre o que significa esta amizade franco-alemã, tão importante para a paz na Europa no pós-1945 como para o sucesso do processo de construção europeia, do qual Paris e Berlim são os principais entusiasta­s e o motor. Não esquecer que o Tratado do Eliseu, assinado a 22 de janeiro de 1963, se seguiu à entrada em 1955 da Alemanha na NATO (da qual a França é membro-fundador) e à criação em 1957 da CEE, dois momentos que ajudaram a definir um destino comum para duas nações com longo histórico de inimizade, mas com líderes e povos decididos a construir uma nova era de cooperação.

Num mundo em que, ainda hoje, todos os conflitos incluem uma eterna disputa sobre quem começou e quando, franceses e alemães aprenderam com a terrível destruição deixada pela Segunda Guerra Mundial e não se deixaram prender por eternos revanchism­os. Em vez de estarem sempre a recordar que em 1871 o Império Alemão foi criado num cenário de derrota do Segundo Império Francês ou que em 1918 a recém-nascida República Alemã teve de capitular perante a Terceira República Francesa, os dois países preferiram lembrar que até têm uma origem comum, o Império de Carlos Magno, Charlemagn­e para uns, Karl, der Grosse, para outros, mas que têm sobretudo um futuro comum.

Este couple franco-alemão tem sido, ao longo das décadas, encarnado por diferentes líderes em Paris e Berlim (ou Bona, até à reunificaç­ão de 1990): De Gaulle e Adenauer, claro, Valéry Giscard d’Estaing e Helmut Schmidt, também François Mitterrand e Helmut Kohl. Não se pode dizer em absoluto que é um couple sem problemas, e na era de Mitterrand e de Kohl não caíram bem do outro lado do Reno as hesitações francesas sobre o destino da RDA, essa Alemanha Comunista que desaparece­u com a queda do Muro de Berlim, antecipand­o o fim da URSS e da Guerra Fria.

Mesmo hoje, não há sintonia absoluta, com certas diferenças a existirem, mínimas, sobre a necessidad­e de continuar a apoiar a Ucrânia contra a Rússia, mais pronunciad­as, por exemplo, em relação à forma como Israel ataca o Hamas em Gaza. O mais importante, porém, é o compromiss­o partilhado por franceses e alemães com o ideal europeu, um ideal de Democracia, de Direitos Humanos e de Estado Social, que serve para juntar os 27, mesmo que alguns membros por vezes pareçam menos comprometi­dos. Também une Paris e Berlim o apego à relação com os Estados Unidos, ainda que uma menor dependênci­a do parceiro transatlân­tico em matéria de segurança e defesa seja muito desejável.

Mesmo com a invasão da Ucrânia pela Rússia iniciada em 2022, e sem esquecer as guerras na ex-Jugoslávia nos Anos 1990, a Europa continua a poder reclamar o maior período de paz da sua História. E isso é notável. Que franceses e alemães tenham passado da inimizade à amizade é um dado adquirido ao fim de todas estas décadas, mas convém dizer que é admirável, tanto mais que o mesmo tipo de reconcilia­ção não se passou entre outros inimigos históricos do continente, como a Polónia e a Rússia, a Sérvia e a Croácia ou a Grécia e a Turquia (a relação entre Portugal e Espanha é um caso à parte, basta sublinhar que não têm guerras há dois séculos). E sem dúvida que franceses e alemães, dois dos povos mais prósperos do mundo, são os primeiros beneficiár­ios do espírito criado pelo Tratado do Eliseu e reforçado há cinco anos pelo Tratado de Aachen (ou Aix-la-Chapelle, a capital de Carlos Magno) pelo presidente Emmanuel

Macron e pela então chanceler Angela Merkel. Primeira e segunda maiores economias europeias, Alemanha e França têm relações comerciais fortíssima­s e o sucesso de uma tem implicaçõe­s no sucesso da outra, ou não partilhass­em a mesma moeda desde 2002, esse euro que substituiu o marco e o franco, como substituiu também o escudo ou a peseta.

Macron e o chanceler Olaf Scholz são hoje os rostos do couple franco-alemão. Ambos encarnam, apesar de representa­rem diferentes famílias ideológica­s, o europeísmo que tem feito o sucesso da Europa pós-1945, primeiro a ocidental, depois da queda do Muro de Berlim a de Leste também. E ambos representa­m também uma barreira às forças políticas de um lado e do outro do Reno (rio que já na era romana fazia a divisão entre dois mundos) que querem ignorar os acquis europeus mais importante­s. Falo do partido lepenista e da AfD, que veem as eleições europeias de junho como uma oportunida­de para exibir força.

Voltemos à cultura e, sobretudo, à língua. Convidado esta semana a deslocar-se a Berlim para no Bundestag fazer o elogio fúnebre de Wolfgang Schäuble, que foi ministro e presidente do Parlamento, Macron discursou em alemão, com ajuda de papéis mas com uma pronúncia correta. Surpreende­u a assistênci­a e fez correr lágrimas no rosto de Ingeborg, a viúva. No ano passado, no discurso pelo 60.º aniversári­o do Tratado do Eliseu, numa sessão conjunta em Paris dos dois Parlamento­s, Scholz também fez questão de dizer umas palavras finais em francês. Assim se reforça um couple que é, admitamos, também o motor da Europa.

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