Diário de Notícias

Portugal roto e Brasil nu

- João Almeida Moreira Jornalista, correspond­ente em São Paulo

Apesar de ser uma das raízes do Brasil, ao lado dos povos originário­s e africanos, Portugal raramente é notícia no país. Perdido na sua pequenez geográfica e insuficiên­cia audiovisua­l, só chega às principais televisões em reportagen­s, muitas vezes auxiliadas por legendas, sobre o pastel de nata ou o queijo da serra. Ou então se o Governo cair de rompante – e, mesmo assim, não passa dos rodapés.

A não ser que... a não ser que um português, por mais anónimo que seja, decida cuspir ofensas contra brasileiro­s. Aí os principais jornais e televisões empolgam-se e os correspond­entes em Lisboa de Folha de S. Paulo eO Globo esfregam as mãos.

Há uns meses, uma portuguesa que ofendeu uma brasileira num aeroporto mereceu até resposta de um ministro, ex-governador e futuro integrante do Supremo, em forma de graçola infantil, causando risos no gado progressis­ta, a quem se exigiria, naturalmen­te, mais discernime­nto do que ao gado otário-bolsonaris­ta.

Em vez de um dia de humilhação, a xenófoba viveu um dia de glória: “Levei um ministro de Estado da República do Brasil a responder-me”, terá pensado.

Se esse ministro, Flávio Dino, tinha tempo livre de sobra, apesar de tutelar a Segurança Pública, uma das pastas mais problemáti­cas do Brasil, poderia então aproveitar para conversar com o companheir­o de Governo Alexandre Padilha, hoje ministro das Relações Institucio­nais, mas em 2013 titular da Saúde, sobre a receção, com vaias e ofensas, aos cerca de 200 médicos cubanos que chegaram ao país naquele ano para trabalhar nos confins da Amazónia.

Nos últimos dias, entretanto, correu pelo esgoto da internet um vídeo de um YouTuber português salazarist­a a lamentar a presença de “gente

do terceiro mundo” nas imediações do Castelo de São Jorge, em Lisboa. No X, ex-Twitter, um advogado brasileiro partilhou o vídeo e aproveitou para sentenciar que “todos os portuguese­s são xenófobos” – sim, eles conhece os portuguese­s “todos” – e que o país é “imundo” e “racista” (revelando-se, portanto, tão xenófobo quanto o salazarist­a).

Não tenhamos, porém, ilusões de pensar que esse idiota do Castelo é um caso isolado: só está a dar voz a muitos mais que andam calados até à hora de votar. E, por falar em votar, não se sabe ainda quantos votos terá o partido de extrema-direita que ele apoia nas legislativ­as de 10 de março – se tivesse um já seria terrível, mas democracia é democracia.

Sabe-se, porém, que no dia 16 de abril de 1998 a Câmara dos Deputados do Brasil permitiu que um deputado brasileiro elogiasse “a cavalaria americana” por ter “dizimado os seus índios”, ao contrário da “muito incompeten­te cavalaria brasileira”.

Em vez de processado ou preso, esse deputado foi eleito, 20 anos depois, por quase 60 milhões de brasileiro­s, presidente do Brasil. E, mesmo perdendo, aumentou a votação em 2022.

Numa fábula de Esopo, a mãe caranguejo manda o filho caranguejo andar para a frente. Ao que ele responde, “então mostra-me como se faz”. É apenas uma versão mais antiga do “diz o roto ao nu”.

Sobre racismo, o Brasil não tem nada a aprender com Portugal. Se um brasileiro indígena, preto ou pobre teme ser maltratado em Portugal, fique desde já sabendo, pela experiênci­a de quem viveu nos dois países, que pior tratado do que na própria terra não será certamente.

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