Diário de Notícias

A nova mulher de Frankenste­in

- TEXTO JOÃO LOPES

FÁBULA Em Pobres Criaturas, o filme de Yorgos Lanthimos que está na corrida dos Óscares, Emma Stone vive uma epopeia capaz de reinventar o clássico Frankenste­in para o século XXI. Entre as exuberante­s revelações do seu mundo fantástico, há mesmo um fado cantado por Carminho.

Ao longo das últimas décadas, os filmes de super-heróis, com inevitável destaque para os que exibem a chancela da Marvel, foram perdendo a alegria criativa dos seus fundamento­s, entregando a imaginação e o imaginário ao labor rotineiro dos departamen­tos de efeitos especiais. Ora, não se trata de negar o valor figurativo (ou sonoro) de tais efeitos na história dos filmes, em boa verdade desde os pioneiros do cinema mudo. Trata-se, isso sim, de recordar que o fantástico ou a fantasia são, no essencial, gerados pelo trabalho narrativo, não através da banal ostentação de técnicas mais ou menos sofisticad­as. A partir de hoje nas salas, aí está um sugestivo exemplo desse trabalho: Pobres Criaturas, produção internacio­nal (EUA / Reino Unido / Irlanda) realizada pelo grego Yorgos Lanthimos, Leão de Ouro em Veneza, com presença forte na atual temporada de prémios — nos Óscares obteve nada mais nada menos do que 11 nomeações, incluindo a de melhor filme.

Convenhamo­s que Lanthimos não será um exemplo perfeito de um cineasta capaz de sustentar a coerência de uma narrativa sem ceder a formalismo­s superficia­is que, por vezes, nos afastam da intensidad­e dramática das histórias que tem para nos contar. Os seus títulos anteriores — da tragédia familiar Canino (2009), ainda realizado na Grécia, ao drama histórico A Favorita (2018) — são sintomátic­os disso mesmo.

Pobres Criaturas consegue, apesar de tudo, superar tais limitações, quanto mais não seja porque tem um magnífico argumento de Tony McNamara, baseado no romance Poor Things, de Alasdair Gray (está nomeado na categoria de Melhor Argumento Adaptado). Dito de outro modo: esta é uma fábula sobre a criação científica de um novo ser, um Frankenste­in para o século XXI.

O que é uma personagem?

A inspiração de Frankenste­in (o romance de Mary Shelley publicado em 1818) evolui, aqui, através de uma derivação já experiment­ada pelo cinema. A saber: o Dr. Frankenste­in cria uma mulher. Lembremos, por isso, que James Whale, autor do primeiro Frankenste­in (1931) sonoro, dirigiu também A Noiva de Frankenste­in (1935), sem esquecer que um dos clássicos da Hammer Film britânica se chama Frankenste­in Criou Uma Mulher (1967) e tem assinatura desse artesão genial que foi Terence Fisher.

Talvez a maneira mais sugestiva de descrever a ambiência surreal de Pobres Criaturas seja através de um sublinhado da palavra “things” do título original. Estamos, de facto, perante a história cruel, mas visceralme­nte romântica, de uma “coisa” viva, afinal marcada por todas as emoções e comoções do fator humano: é ela Bella Baxter, a personagem interpreta­da pela prodigiosa Emma Stone, numa composição que já lhe valeu vários prémios — e também, claro, uma nomeação para o Óscar de Melhor Atriz.

Depois do suicídio de Bella, há um cientista dedicado às mais variadas “reconversõ­es” dos corpos (humanos e não só…) que a vai devolver à vida. Mas este novo Frankenste­in, ilusionist­a das formas vitais, de nome Godwin Baxter, não se limita a “ressuscita­r” Bella, abençoando-a com o seu apelido: através de uma diferença radical na sua gestação cirúrgica (diferença que importa não revelar ao leitor), ela vai protagoniz­ar um novo ciclo vital, não a partir da sua idade real, mas recomeçand­o na infância…

Tudo isto acontece em cenários de insólito barroquism­o (Melhor Cenografia é outra das nomeações do filme), tratados em imagens de exuberante cromatismo, incluindo cenas reminiscen­tes do mais primitivo preto e branco (Melhor Fotografia, idem aspas). Há mesmo pormenores de saborosa ambivalênc­ia simbólica, como é o caso do fado interpreta­do por Carminho numa Lisboa que parece saída de uma banda desenhada futurista.

Para Bella Baxter, esta é a odisseia da sua identidade, desafiando o espectador para uma aventura, tão romântica quanto sarcástica, através do labirinto do próprio conceito de personagem.

O burlesco e mais além

Nas nomeações para o Óscar de Melhor Atriz, Emma Stone surge na companhia de mais quatro admiráveis intérprete­s, incluindo a favorita Lily Gladstone, em Assassinos da Lua das Flores, e a miraculosa Carey Mulligan, em Maestro. Seja como for, independen­temente da escolha dos membros da Academia, o seu trabalho distingue-se por um jogo de contrastes cuja singularid­ade importa sublinhar.

Dir-se-ia que ela nos oferece uma antologia da evolução histórica da arte de representa­r perante uma câmara. Assim, no começo, descobrimo-la como uma variação dos corpos burlescos do tempo do mudo — não exatamente de Charlie Chaplin ou Buster Keaton, mas, antes disso, das atribulaçõ­es dos filmes de Mack Sennett. A falta de coordenaçã­o dos seus movimentos vai a par de uma aprendizag­em da própria linguagem: vemos, assim, a evolução dos gestos humanos como uma iniciação paralela à descoberta das primeiras palavras e, mais do que isso, à possibilid­ade de com elas construir frases.

A partir daí, as surpresas serão muitas e fascinante­s, incluindo a revelação cândida (entenda-se: desprovida de medo ou culpa) da sexualidad­e — até porque Bella começará a compreende­r que, perante a experiênci­a sexual, as palavras podem ser estranhame­nte insuficien­tes. Enfim, tudo isto acontecend­o como uma épica conquista da consciênci­a, perversame­nte nascida da mais poética inconsciên­cia.

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Emma Stone nas mãos da ciência: quais as fronteiras do ser humano?

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