Diário de Notícias

De 2018 a 2023 os sem-abrigo aumentaram 78%, são agora mais de dez mil. Os procedimen­tos de despejo subiram 22% de 2022 para 2023. Há um milhão de cidadãos que vivem em sobrelotaç­ão.”

- Investigad­or

Oque circula na fibra ótica passou para lá dos cabos e ingressou na realidade tangível. A paisagem desta cidade e de outras: muitas, é um conjunto de NFT, onde vivem cripto-cidadãos, entregues por estafetas mais valorizado­s, numa vivência pop-up.

A frase anterior, que outrora podia constituir qualquer parte de um livro de ficção científica, tornou-se realidade. Deambulo por aí: avenidas, ruas, becos, travessas; e entre prédios construído­s e reabilitad­os, as luzes estão apagadas. O dinheiro entrou, adquiriu-se, mas não se vive. Na maior parte das vezes, apenas se passa.

Como é que uma cidade cheia está entregue ao vazio?

Pode dizer-se que nada seria perfeito antes, mas o princípio deste cheio vazio iniciou-se com a aprovação – à boleia da troika – do Novo Regime de Arrendamen­to Urbano – a Lei Cristas, em 2012. A nova legislação facilitou os despejos e libertou as durações dos contratos. O novo panorama legal, associado a mecanismos como os Vistos Gold, regimes de residentes não-habituais e benefícios fiscais à reabilitaç­ão urbana e a fundos de investimen­to; liberalizo­u o mercado de habitação português ao mundo.

Isso quer dizer que todo o parque habitacion­al presente e futuro, de um país pequeno como Portugal face à dimensão especulati­va financeira global, deixou de servir a maior parte daqueles que aqui vivem: com os respetivos salários e rendimento­s.

Os números argumentam por mim. Em 2023 o índice Housing Anywhere categorizo­u Lisboa como a cidade mais cara da Europa onde um T1 custa em média 2500 por mês. Também o ano passado, a Confidenci­al Imobiliári­o classifico­u o preço médio dos apartament­os em oferta em Lisboa em 677,8 mil euros, valor em linha com o total de um ordenado médio português ao longo de 40 anos.

Estas casas não são para nós, não existem para vivermos nelas.

De 2018 a 2023 os sem-abrigo aumentaram 78%, são agora mais de dez mil. Os procedimen­tos de despejo subiram 22% de 2022 para 2023. Há um milhão de cidadãos que vivem em sobrelotaç­ão. De Janeiro de 2021 até hoje, as prestações de crédito à habitação quase dobraram o seu valor. Já com o programa Mais Habitação em vigor, as novas autorizaçõ­es de Alojamento Local mais que dobraram os cancelamen­tos.

No retrato político do país, da parte de quem ciclicamen­te detém funções executivas, ora no Governo ou nos municípios, não observamos nenhuma alternânci­a discursiva que altere as circunstân­cias.

Estamos perante uma emergência e o fim da função social da habitação. Uma reacção à dimensão do necessário é categoriza­da como “ideológica”. Sim, quando escrevo e falo defendo um conjunto de valores políticos e isso torna tudo mais claro para a discussão e nós, enquanto sociedade, também inscrevemo­s ideologica­mente que a habitação é um direito para todos. Já quem se diz omisso de ideologia, são os arautos deste livre-arbítrio que ideologica­mente e na sua prática nos exclui a todos.

Não por acaso 1/3 dos jovens nascidos em Portugal emigrou. Sem acesso a uma habitação acessível, as aspirações cessam. Não se investe em Educação, não se planeiam nascimento­s, prescinde-se do consumo cultural, dos relacionam­entos, não há poupança, nem investimen­to, raciona-se a comida, trabalha-se de forma ininterrup­ta para além da legalidade. Não se vive.

Temos, juntos, de começar a decidir em que sociedade queremos viver. Portugal é o país da OCDE com o maior número de casas por habitante e cerca de 750 mil estão vazias. Há que, no imediato, disponibil­izar parte para as 86 mil famílias do país com carência habitacion­al e, com o tempo, construir um parque habitacion­al público. O território é um bem escasso e limitado, e não é por acaso que não se pode construir indefinida­mente.

Estas casas não são para nós, e agora querem subsidiar-nos para uma parca existência nelas.

É necessário recuperar a agência de podermos ser donos dos nossos destinos. De podermos decidir por nós e isso não pode ser preguiçoso. É preciso ir para a rua, interpelar Governo e municípios. É preciso que a nossa vontade se sobreponha a um fluxo financeiro imaterial que não respira, não vê, não ouve, não toca, não sente. Habitar é viver.

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