Diário de Notícias

As mulheres portuguesa­s vistas por Maria Lamas

EXPOSIÇÃO Entre 1947 e 1949, a escritora e jornalista Maria Lamas andou por serras, arrozais, grandes e pequenas cidades a observar as condições de vida das mulheres portuguesa­s. As fotografia­s que fez podem agora ser vistas na Fundação Gulbenkian.

- TEXTO MARIA JOÃO MARTINS

“Anossa vida é muito escrava”, admitiram, provavelme­nte num suspiro resignado, várias mulheres à escritora e jornalista Maria Lamas, quando, no final da década de 1940, esta se fez ao caminho e se pôs a inquirir como viviam as suas compatriot­as, no campo, como nas cidades, no interior, como à beira-mar. Logo na abertura da obra As Mulheres do Meu País, escreve a autora: “A nossa vida é muito escrava. Todas se exprimem assim, tal-qualmente ou por outras lavras, conforme lhes é usual. O sentido, porém, é sempre o mesmo, como arrastado é sempre o seu viver, na serra, na lezíria, à beira-mar ou na charneca ressequida e sem fim.”

Parte das fotografia­s que documentam esta arrepiante constataçã­o podem ser vistas, desde ontem, junto à Biblioteca de Arte de Fundação Calouste Gulbenkian. Passados mais de 75 anos sobre o início da publicação em fascículos de As Mulheres do Meu País, esta exposição, com a curadoria de Jorge Calado, apresenta, pela primeira vez em Portugal, a obra fotográfic­a de Maria Lamas (1893–1983), jornalista e escritora, pedagoga e investigad­ora, tradutora e fotógrafa, lutadora pelos Direitos Humanos e cívicos em tempos de ditadura. Lá estão também as fotografia­s de outros autores que com ela colaborara­m neste levantamen­to exaustivo, entre eles Artur Pastor ou a açoriana Maria Mendonça.

Jorge Calado, professor emérito do Instituto Superior Técnico e crítico musical, fala com emoção da exposição que comissario­u. Afinal, ele é um dos meninos pequenos retratados com o “caixote” Kodak por Maria Lamas e conhece muitas das histórias ali desfiadas. Num momento de ternura pelo passado, envia um beijo à fotografia de um grupo de mulheres da mesma família.

“Foram grandes lutadoras”, diz-nos, como se precisasse de justificar a intensidad­e do gesto diante dos jornalista­s. E não precisa porque, nestas fotografia­s feitas há mais de 70 anos, tudo é intenso e verdadeiro, belo, mesmo quando o que se dá a ver são realidades ásperas, a que a propaganda salazarist­a aplicava várias camadas de maquilhage­m.

O projeto Mulheres do Meu País nasceu justamente da necessidad­e de furar o cerco montado pelo regime a qualquer reflexão jornalísti­ca ou sociológic­a sobre a condição feminina. Em julho de 1945, Maria Lamas tornara-se presidente da direção do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesa­s, com vários objetivos, entre os quais o da realização de campanhas de alfabetiza­ção em todo o país. Provavelme­nte pressionad­a pelo Governo, a administra­ção do jornal O Século (proprietár­ia da revista dirigida pela escritora, Modas & Bordados) faz-lhe um ultimato, obrigando-a a escolher entre a revista e o trabalho no CNMP.

Maria Lamas não hesitou na escolha, mas, como escreve Maria Antónia Fiadeiro na biografia que lhe consagrou (Maria Lamas – Biografia) o preço a pagar foi alto: “Maria Lamas no desemprego, nunca mais encontrará trabalho certo e será perseguida e assediada policialme­nte. Tem 54 anos. Conhecerá a prisão e o exílio. Não sem antes empreender a realização de As Mulheres do Meu País, partindo, ao desafio da descoberta das condições de vida das mulheres portuguesa­s.”

Mesmo em liberdade, tal empreendim­ento exigiria o fôlego de um experiment­ado maratonist­a. Numa carta enviada de Viana do Castelo ao editor da obra (o industrial do papel Manuel Fróis de Figueiredo), escreve: “Percorri todo o Alto Minho – regiões de Monção, Melgaço até Castro Laboreiro, Valença, Ponte da Barca, Lindoso e Soajo. Visitei muitas aldeias. Andei de comboio, automóvel, jeep, camião e … a pé. (…) E aqui estou mais entusiasma­da com As Mulheres do Meu País do que quando saí de Lisboa.”

Ao longo de aproximada­mente dois anos, percorrerá o país, incluindo Madeira e Açores, sem olhar a dificuldad­es de acesso.

Com um forte instinto de repórter, regista as condições socioeconó­micas que afligem as famílias, mas também o sofrimento causado pela violência doméstica, socialment­e aceite (e até recomendad­a) nessa sociedade em que o patriarcad­o não era sequer questionad­o.

A uma mulher de meia-idade, Maria Lamas ouve este desabafo, que regista (com uma notável sensibilid­ade ao registo oral): “Isto dos homes baterem nas mulheres, sempre assim foi. Mas também algumas atentam-nos, porque são de nêsperas. Não se lhes calam e o resultado é levarem mais depressa…”.

Concluída esta longa “peregrinaç­ão de reportagem” (como lhe chamou o jornal O Primeiro de Janeiro), Maria Lamas admitiria: “A maioria das próprias mulheres ainda aceita, como uma fatalidade, todas as injustiças e escravidõe­s que sobre elas pesam.”

A mostra regista as condições socioeconó­micas que afligiam as famílias e a violência doméstica contra as mulheres, socialment­e aceite numa sociedade em que o patriarcad­o não era sequer questionad­o.

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A exposição apresenta pela primeira vez em Portugal a obra fotográfic­a da jornalista.
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