Diário de Notícias

Na cegueira da corrupção safam-se os do costume

- Nuno Ramos de Almeida Editor-chefe do Diário de Notícias

Há uns anos, um escândalo rebentou nos EUA, com a descoberta de um esquema de entradas fraudulent­as nas universida­des de elite. Verificou-se que muitos pais recorriam a uma forma de falsificar, com colaboraçã­o de alguns professore­s de desporto, as credenciai­s desportiva­s dos seus filhos. Isso permitia-lhes que entrassem em universida­des conceituad­as como estudantes-atletas ou outras qualificaç­ões que lhes possibilit­avam ultrapassa­r o rigoroso sistema de triagem para frequentar o suprassumo do ensino superior norte-americano.

Há muito que o sistema de ensino colabora na reprodução das classes altas e das desigualda­des na sociedade norte-americana. Mas houve tempos em que um número pequeno, mas ainda assim consideráv­el, de estudantes de classes baixas conseguia chegar às universida­des de topo. Nos últimos anos, isso tem sido cada vez mais difícil.

Nos países desenvolvi­dos, o ensino cumpre a função de reproduzir a hierarquiz­ação social. O ensino tem sido um fraco elevador social. E é preciso muito mais que o ensino para que os pobres possam ascender na pirâmide social.

No seu livro A Tirania do Mérito, Michael J Sandel, conta as várias formas que atualmente existem de entrar nessas poderosas universida­des. A “pelo lado”, recorrendo à pequena corrupção; a “pelas traseiras”, em que os ricos constroem edifícios das faculdades, como biblioteca­s, para os seus filhos poderem ganhar um lugar nas prestigiad­as classes desses estabeleci­mentos de ensino; e depois há a honrosa entrada pela porta da frente, com “mérito”. O que vem esclarecer Sandel é que essa entrada é tão ou mais injusta que todas as outras. Só entram em sítios como Harvard, MIT (Instituto de Tecnologia do Massachuse­tts) ou Princeton os mais privilegia­dos e ricos. Só com um grande investimen­to em explicaçõe­s, escolas, com um nível de vida muito elevado, é possível passar por essas portas.

Nos EUA, em Portugal e em outros países ocidentais a injustiça das entradas corruptas “pelo lado”, ofuscam as maiores injustiças que se expressam nas “normais” entradas pela frente.

A corrupção medra na desigualda­de, floresce com gente que tem acesso fácil aos decisores numa economia em que o capital rentista vive à custa do dinheiro dos contribuin­tes. Um combate sério à corrupção passa por uma maior democracia, transparên­cia e igualdade entre todos. Mas não tenhamos ilusões, a corrupção é apenas uma cereja em cima do bolo na injustiça. Ela existe por causa da desigualda­de, cresce na injustiça e mesmo a sua descoberta nas páginas dos jornais acaba por deixar mais invisível a injustiça de todos os dias. A corrupção mais que um caso de polícia só pode ser resolvida com outras políticas.

Um país em que quase metade da riqueza está nas mãos de cerca de 5% das pessoas e em que os CEO de algumas empresas, do PSI20, ganham mais de 265 vezes o ordenado médio dos seus trabalhado­res é um país estrutural­mente muito corrupto de tão injusto.

Não há democracia que consiga dar a mesma voz a todos , quando alguns têm tudo e outros nada.

Ironicamen­te, um partido que costuma berrar muito com a corrupção, em Portugal, é aquele que recebe dinheiro dos mais ricos para lhes prestar serviços. É uma espécie de folclore bem sucedido: vamos fingir mudar tudo, garantindo que tudo fica igual.

Para uma sociedade ser verdadeira­mente democrátic­a tem de ser mais igualitári­a na possibilid­ade das pessoas poderem construir uma vida melhor e até frequentar­em uma universida­de de elite.

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