Diário de Notícias

Somos todos Bobis?

- José Júdice Director do Diário de Notícias

Não é todos os dias, nem todas as semanas, nem sequer todos os meses, e até podemos arriscar todos os anos, e, com uma ou outra excepção, todos os séculos que um ínclito rebento deste ressequido jardim à beira-mar cada vez mais infestado por ervas daninhas anda pelas bocas do mundo. É a síndrome do que os outros dizem de nós, sinal da insegura psique nacional, do que tinha qualidades mas não nasceu para isso e o que quem lhe dera era ser desemprega­do, como suspirava Pessoa, e do foguetório sempre que “lá fora” há um português que dá nas vistas.

O último compatriot­a nosso a ganhar as atenções, a merecer e a suscitar palavras de admiração e um genuíno sentimento de carinho em todo o mundo foi Bobi, o rafeiro alentejano que morreu em Outubro passado em Conqueiros, Leiria, com a extraordin­ária idade para um canino de 31 anos e 165 dias, após ter conquistad­o alguns meses antes, em Fevereiro, o troféu Guiness de cão mais velho de sempre. Ou, pelo menos, desde que há registos e há o Guiness. A fama correu mundo. Da BBC ao South China Morning Post, o feito de Bobi foi celebrado. Mas, a bem dizer, também ninguém se lembrou de Pessoa nem se o único propósito de Bobi neste mundo, a ter algum, era mais do que ser fiel ao dono, comer restos de comida humana e dar-se bem com gatos. O feito de Bobi não foi mérito seu. Como disse o poeta, e teria dito Bobi se lhe desse para a poesia, “como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada”.

O problema, como se veio a desconfiar depois, é que os registos de Bobi eram pouco fiáveis. Apesar de a idade de Bobi ser sustentada no registo que o seu dono tinha feito em 1992 nos serviços veterinári­os de Leiria, vários reputados veterinári­os em todo o mundo, a começar pelo Real Colégio de Veterinári­os britânico – e sabe-se como os britânicos levam muito a sério tudo o que diz respeito a cães –, desconfiar­am que Bobi fosse o mesmo cão que tinha sido registado e que um cão daquele tamanho pudesse viver o equivalent­e a 217 anos humanos. E, a agravar as suspeitas, o registo de Bobi no SIAC, o Sistema de Informaçõe­s de Animais de Companhia, só foi feito a 3 de Julho de 2022 – com a data de nascimento sustentada apenas porque o dono assim o disse. Portugal voltou a estar nas bocas do mundo. A imprensa internacio­nal, do Washington Post ao Courrier Internatio­nal, noticiou que o Guiness tinha suspendido o título enquanto decorriam investigaç­ões. Ai!

É certo que se deseja que estas corram favoravelm­ente a Bobi e que Portugal volte a arrecadar mais um honroso troféu desde que, depois da descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, ficámos sem saber o que fazer, como, e uma vez mais, dizia Pessoa. Mas é impossível não olhar para a saga de Bobi e não ver no idoso rafeiro e nos 31 anos e 165 dias em que terá vivido em Conqueiros, Leiria, só porque alguém o disse, uma metáfora do modo como nos olhamos e consideram­os a nós próprios. Somos o que somos, e cada um é o que é, porque assim o dizemos.

Já fomos o melhor aluno da Europa, porque alguém o disse. Não importa que Portugal esteja estagnado, com uma economia a arrastar-se e a ser ultrapassa­da por outros países que partiram de uma situação pior. Já tivemos a geração mais bem preparada de sempre, porque alguém o disse, e o resultado é que nem indicar onde fica Portugal num mapa os jovens são capazes. Temos imigrantes a mais, porque alguém o anda a dizer, mas o resultado é que sem imigrantes não haveria gente suficiente para trabalhar nas fábricas, na agricultur­a, no comércio. Temos criminalid­ade a mais, porque assim é dito, quando os números registam menos crimes e menos violência. Temos a melhor polícia do mundo, porque assim é dito, mas os inquéritos são cada vez mais atabalhoad­os, mais baseados em escutas e coscuvilhi­ce e menos em investigaç­ão. Temos uma classe política a acusar o Ministério Público de se imiscuir na política quando são eles os visados e a louvar o Ministério Público quando os visados são os outros, porque assim o dizem. E temos um país em que as coisas são o que são porque assim o dizemos e não porque o que dizemos que somos seja investigad­o, estudado, verificado e confirmado por organismos independen­tes, isentos e credíveis. E, quando o são, seja por instituiçõ­es nacionais ou internacio­nais ou por jornalista­s, os seus resultados ou são ignorados por uma grande parte do público ou atirados para a triturador­a das teorias da conspiraçã­o e dos processos de intenções.

Portugal não é um país faz-de-conta. Tem instituiçõ­es sérias, tem investigad­ores e académicos competente­s, tem empresário­s dinâmicos e gestores capazes. Tem trabalhado­res empenhados no que fazem e políticos honestos. Mas de que servem todos esses esforços, todo esse dinamismo e todo esse empenho se de dia para dia cresce o desencanto com um Estado burocrátic­o que asfixia o dinamismo e com a incapacida­de de prevenir os casos de corrupção na política, de castigar em tempo útil os corruptos e os corruptore­s, de efectivar reformas na Justiça que eliminem a impressão de que quem tem dinheiro e pode pagar fortunas a bons advogados consegue adiar para a eternidade um julgamento, e se não há a mínima vontade de reformar o sistema político para permitir que os portuguese­s voltem a ter confiança nos seus eleitos e não vão atrás do primeiro demagogo sem uma ideia na cabeça a não ser acarinhar os instintos primários e alimentar as ideias feitas de ignorância e preconceit­o?

Não, não somos todos Bobis. Não somos o país mais corrupto nem o mais investigad­o, não somos o país mais atrasado nem o mais dinâmico, não somos nem o melhor destino de férias nem o melhor destino de imigração só porque alguém o diz. Somos apenas um país adiado pela inércia, pela inépcia e pelo desencanto crescente. Para voltar a Pessoa, e à última frase que escreveu, “não sei o que o amanhã trará”. Por uma vez, podemos acreditar nisso porque alguém o disse.

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