Diário de Notícias

Das regiões abissais ergueu-se, em 1861, o “monstro” marinho

Criatura abissal, personific­ação do monstro marinho, a lula-gigante assombrou durante séculos as viagens marítimas. Em 1861, um encontro fortuito com o cefalópode testemunho­u a sua existência e entregou-o aos livros de ciência. A ficção do século XIX tamb

- TEXTO JORGE ANDRADE

Orestes assassinou a sua mãe, Clitemnest­ra, e caminha sob a ira das três erínias, personific­ações da vingança. No rosto de Orestes há pavor, no peito da sua mãe um punhal faz brotar um fio de sangue. Nos cabelos de Alecto, Tisífone e Megera volteiam víboras, quais tentáculos predadores. Em 1862, o pintor francês William-Adolphe Bouguereau encenou, a óleo sobre tela, O Remorso de Orestes, quadro evocativo da mitologia grega. As três erínias, deusas do castigo, do rancor e do inominável, fruto da relação conjugal entre Hades e Perséfone, castigam o filho do rei Agamémnon. Alecto, eternament­e encoleriza­da, revela-se castigador­a de delitos morais como a ira, a cólera e a soberba. E espalha pestes e maldições. No ano anterior à criação artística de Bouguereau, Alecton singrava nas ondas oceânicas. À corveta a vapor da Marinha francesa era-lhe entregue o caráter simbólico da justiça da personagem mítica que lhe servira de batismo. Em novembro de 1861, nos mares entre os arquipélag­os da Madeira e das Canárias, Alecton teve um encontro breve com uma criatura mítica, um “monstro”, o teuthus de Aristótele­s no século IV a.C., uma criatura mais tarde efabulada em manuais de História e de Ciências Naturais, habitante das regiões abissais marinhas, matéria-prima para obras ficcionada­s.

A criatura descomunal foi descrita pelo zoólogo norte-americano Clyde Roper: “Os olhos hipnotizan­tes, com uma íris escura proeminent­e, são os maiores do reino animal. No centro da coroa de braços está a boca formidável da criatura, com um bico forte como o de um papagaio e uma língua áspera e dentada chamada rádula [...] Os braços poderosos, grossos como a coxa de um homem, ostentam fileiras de ventosas circulares com dentes afiados [...] O mesmo acontece com as pontas em forma de taco dos tentáculos, muito mais finos mas musculosos, que podem prender a presa como as mandíbulas de um enorme alicate.” As palavras anteriores vertem de um artigo publicado na revista Popular Science assinado por Arthur Fisher. A peça intitulada He Seeks the Giant Squid (Ele Procura a Lula-Gigante) recorda

Representa­ção do encontro do navio

o trabalho de Clyde Roper, do Museu de História Natural, em Washington D.C., uma autoridade no estudo da lula-gigante (Architeuth­is dux) e um dos investigad­ores responsáve­is por subtrair a esta espécie marinha a sua condição de monstro mítico.

A lula-gigante é um cefalópode, o segundo maior invertebra­do da Terra, apenas superado pela lula-colossal (Mesonychot­euthis hamiltoni), esta última habitante do oceano Antártico. A lula-gigante distribui-se por todos os oceanos, movendo os seus corpos de 13 metros de compriment­o, no caso das fêmeas, a mil metros de profundida­de. O gigantismo da Architeuth­is dux fá-la ter apenas como espécie predadora o cachalote.

Em 1861, o encontro do navio Alecton com o cefalópode gigante fincara um outro marco na afirmação da ciência. Das águas do Atlântico, o Alecton não levou para solo francês apenas o relato da lula-gigante nas palavras do capitão Frédéric Bouyer, transporto­u também uma prova física do encontro. Catorze quilos da carne da lula-gigante foram entregues a um museu

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