Diário de Notícias

Diogo Costa Amarante – o ar da sua graça em Roterdão

- TEXTO RUI PEDRO TENDINHA

O Festival de Roterdão tem muitos filmes de origem portuguesa. Hoje exibe-se em estreia mundial um objeto que não se quer identificá­vel, Estamos no Ar, balada portuense de Diogo Costa Amarante, um filme sempre perto de um desejo selvagem. Mas em Roterdão temos também Rodrigo Areias, Tiago Guedes, Leonardo Mouramateu­s, Duarte Coimbra e Alexander David.

Um Porto de sintonias não amestradas. Entre lares de terceira idade, parques de camionista­s, discotecas meio industriai­s, estúdios de televisão, salões de beleza de bairro e o vislumbre do planeta Júpiter. É assim a Invicta em Estamos no Ar, comédia tristíssim­a de Diogo Costa Amarante, cineasta do Porto, vencedor de um Urso de Ouro das curtas de Berlim em 2017 com Cidade Pequena, hoje apresentad­o no Festival de Roterdão na secção Harbour.

“Trata-se de um jogo de possibilid­ades em que não estou a filmar o real, a atualidade, mas também não estou a convocar o espetáculo do espetáculo do irreal. É um tipo de representa­ção do mundo que parece uma tangencial, algo mais próximo de um significad­o que não seja tão real”, começa por dizer o cineasta na sua casa do Porto, há uns dias. E continua: “Se calhar, é uma comédia de enganos, o tal jogo de encontros e desencontr­os.” Estamos no Ar tem um humor seco que não procura a gargalhada, mas surpreende pelo tom e pelos timings. Rir de uma certa tendência humana para o trágico-cómico, para o ridículo das convenções dos acidentes humanos – homens-meninos que são camaleões, ratinhos a atazanar o espaço doméstico, fantasmas desencanta­dos e vizinhos infelizes. Pelo meio, o rastilho do fetiche: pode ser uma farda, podem ser tantas outras coisas.

A história segue uma mãe, um filho e uma avó. Três corpos isolados numa espécie de labirinto de solidões e desejos trocados. A mãe, Fátima (Sandra Faleiro), afirma não ter sentimento­s, mas vive atraída por um polícia vizinho, enquanto o filho, Victor (Carloto Cotta), se apodera da farda desse polícia para atrair um engate online. Enquanto isso, a avó, Júlia (Valerie Braddell), tenta fugir do fantasma do marido no lar de terceira idade. Numa espiral de insónias e desencontr­os, as solidões desta família ficam à espera de um acaso da noite.

“A ideia do próprio filme é desconstru­ir um pouco a expectativ­a que o próprio género conduz, sobretudo a nível daquilo que é suposto vir a seguir ou suposto acontecer. Ou seja, contribuir para aquilo que gosto muito: tirar um bocado o tapete ao espectador ao ponto de começarmos a fazer perguntas sobre o que aquilo afinal era, embora não queira nada fazer o twist à toureiro. Sou muito simpatizan­te de usarmos o humor para falar de coisas sérias”, refere, aludindo aos tais códigos da comédia de equívocos. Sobre a ida a Roterdão, confessa também não estar com grandes expectativ­as, sobretudo por ser a primeira vez que aí vai, embora saliente que a sua secção, a Harbour, não tem competição.

“Não sinto a pressão de estar a fazer a primeira longa. Curtas, longas... é relativo. Vejo isto como um caminho. Este processo foi violento para mim, porque também o produzi. Apanhámos a pandemia pelo meio e tivemos de parar, suspender e retomar. Foi toda uma viagem hercúlea levar isto até ao fim! Um batismo de fogo que me dá agora uma sensação do género: sobrevivi!”, assume, fazendo questão de ser explícito quanto à questão da solidão que o filme evoca: “Para mim as palavras são importante­s: há uma linha que separa solidão e solitude. Enquanto a solidão é uma coisa muito pesada e negativa, a solitude tem a ver com algo que nos constitui e que é verdadeira­mente nosso. Mas, mais do que isso da solitude e solidão, o filme fala do desejo a ser apropriado por certos objetos e da perceção desse mercado do nosso buraco. Ou como o objeto do desejo nada resolve... Na prática, passa por uma coisa que gosto muito: explorar o desejo de desejar.” E Diogo Costa Amarante filma o fetiche no limite: os seios novos de uma mulher, a farda que implica fantasia. Pode ser isso e muito mais, há muitas portas de entrada, outras de saída. E é precioso o olhar triste de Carloto Cotta, o rapaz-homem perdido numa ideia de amor frustrado, seja a dançar Tame Impala (sim, Let it Happen entra que nem ginjas em certa sequência), seja a olhar para o seu camaleão de estimação. Pensemos então num imenso e sedutor carrossel de solitudes ou solidões.

Para já, é provável que, depois de Roterdão, Estamos no Ar se estreie num festival nacional, para mais tarde poder ter estreia nos cinemas.

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Diogo Costa Amarante, magnífica a sua estreia nas longas...

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