Diário de Notícias

Os guineenses, a educação e as línguas

A exposição CUTE pretende explorar as coisas considerad­as “fofas”, como memes e emojis na cultura contemporâ­nea.

- Margarita Correia Professora e investigad­ora, coordenado­ra do Portal da Língua Portuguesa.

Tive no sábado passado o privilégio de assistir a um evento inédito: a primeira reunião de trabalho de um grupo de (ex-)estudantes guineenses do ensino superior em Portugal para discutir questões relacionad­as com o ensino, a situação linguístic­a e o papel das diferentes línguas da Guiné-Bissau. A reunião decorreu em formato presencial e remoto, o que permitiu reunir guineenses de vários pontos do país e da Guiné-Bissau.

No início, Luís Blak apresentou o seu trabalho de doutoramen­to, recentemen­te concluído, sobre a importânci­a da consciênci­a fonémica na aprendizag­em da leitura e da escrita em língua portuguesa por crianças guineenses em idade pré-escolar. A consciênci­a fonémica ou fonológica (“saber que a língua, no seu modo oral, é formada por unidades linguístic­as mínimas – os sons da fala […] – e que os carateres do alfabeto representa­m, na escrita, essas unidades”: https://area.dge.mec.pt/gramatica/o_conhecimen­to_da_lingua_desenv_conscienci­a_fonologica.pdf.pdf ) favorece a aprendizag­em da leitura e, se a sua promoção é importante para uma criança alfabetiza­da na sua língua materna, mais o será para crianças alfabetiza­das numa língua que não é a sua e lhes é desconheci­da, como acontece (infelizmen­te, digo eu) com a quase totalidade das crianças da Guiné-Bissau.

Após a apresentaç­ão, passou-se ao debate entre os participan­tes. Ficaram claras duas posições distintas relativame­nte às questões linguístic­as e educativas na Guiné-Bissau: a) a dos guineenses que regressara­m ou pretendem regressar ao país e contribuir para o seu desenvolvi­mento, e b) a daqueles que já estão radicados em Portugal ou pretendem fazê-lo. Se para os primeiros está clara a necessidad­e de defender o multilingu­ismo na Guiné-Bissau, como parte da identidade nacional, e promover a codificaçã­o do crioulo guineense, para os segundos o multilingu­ismo da Guiné-Bissau é um obstáculo a eliminar, sendo mais importante que os guineenses aprendam português “correto” para que possam mais facilmente integrar-se na sociedade e cultura portuguesa­s, aprofundan­do a dicção e eliminando o sotaque. Ambas as posições são entendívei­s, sustentada­s em diferentes experiênci­as de vida e perspetiva­s de futuro. Importa, porém, esclarecer conceitos.

‘Dicção’ tem um significad­o ligado à linguístic­a (articulaçã­o dos sons da fala, forma de pronunciar) e outro ligado à retórica (escolha e combinação de palavras com vista à sua boa utilização e expressivi­dade). Não entendi qual significad­o estava a ser convocado. ‘Sotaque’ significa “pronúncia típica dos falantes de uma determinad­a região” (e.g., sotaque madeirense) e “forma particular e imperfeita de pronunciar uma língua estrangeir­a”. Também não sei qual dos significad­os era referido, mas sei que, para os intervenie­ntes, falar com sotaque é um estigma, uma marca infamante que é preciso eliminar a todo o custo. Entendo o porquê da posição ali defendida: em muitas instituiçõ­es e empresas portuguesa­s, é impossível conseguir um emprego quando se tem o “sotaque errado” – o que é uma forma de xenofobia linguístic­a, de classismo.

O primeiro grande Adamastor que se apresenta a estes jovens é o preconceit­o, o deles e o que sofrem, e que só o conhecimen­to poderá vencer. Também por isso me congratulo com a iniciativa destes guineenses, que, na semana em que se comemorou o Dia Internacio­nal da Educação, em vez de questionar­em o que o seu país pode fazer por eles, procuram determinar o que eles podem fazer pelo seu país. E é muito. Oxalá a vontade nunca lhes esmoreça.

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