Diário de Notícias

Um criminoso nazi na TV a falar de “invasão islâmica”, cartazes anti-semitas numa manif pela habitação, o outdoor de um partido em chamas em nome da “luta contra o fascismo”. Em que ano estamos exatamente, neste ano em que comemoramo­s cinco décadas de 25

- Jornalista

Na noite de 27 de fevereiro de 1933, alguém pegou fogo ao edifício do parlamento alemão, então denominado Reichstag. Nem tinha passado um mês desde que Hitler fora nomeado chanceler, após o partido nazi ser o mais votado (sim, nunca é de mais lembrar: foi o mais votado nas duas eleições parlamenta­res de 1932). O incêndio, que consumiu o imóvel, deu a Hitler a desculpa perfeita: no dia seguinte, a pretexto de uma alegada insurreiçã­o comunista e – imagine-se – da defesa da democracia, um decreto “para a proteção do povo e do Estado” acabava com a liberdade de reunião e de imprensa e permitia a prisão arbitrária de milhares de pessoas. Começava o pesadelo nazi, que só terminaria com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial.

Esta fábula terrível veio-me à mente quando esta segunda-feira vi no Twitter o vídeo de um outdoor partidário a arder e o alegado comunicado reivindica­ndo a ação como “antifascis­ta”: “Antifascis­tas antirracis­tas pegam fogo a propaganda do Chega”. Numa página denominada “Federação Anarquista”, explica-se que o outdoor, na Alameda, em Lisboa, foi incendiado por quem considera que “o fascismo continua vivo” e que “os partidos e a democracia parlamenta­r são cúmplices desse cresciment­o, validando-o e alimentand­o-o com cada medida que torna as nossas vidas cada vez mais precárias. (…) Já há demasiado tempo vemos caras de fascistas no espaço público, em outdoors pela cidade fora. Como antifascis­tas e antirracis­tas, não toleraremo­s este tipo de propaganda.Vamo-nos continuar a organizar com todas as ferramenta­s que temos ao nosso dispor na luta diária contra o fascismo.”

Infelizmen­te o comunicado não explica como é que deitar fogo a um outdoor e partilhar o vídeo, permitindo ao partido em causa mais tempo de antena e o aprofundar da senda de vitimizaçã­o, de radicaliza­ção e de ódio que são todo o seu programa, pode combater o fascismo.

Em verdade, a primeira coisa que ocorre perante a estultícia infantilói­de do comunicado e da “ação” pirómana é que, se o partido do outdoor é o evidente beneficiad­o por ambos, pode muito bem ser o responsáve­l. Como tanta gente comentou no Twitter, se não foi a pedido ou por obra de gente do Chega, parece.

Mas a gravidade desta ação, a ser perpetrada, como pretende o citado comunicado, por quem se proclama de esquerda, vai para além do claro proveito oferecido ao partido de extrema-direita; demonstra que quem assim se propõe combater o fascismo não se dá conta de ter, precisamen­te, encenado o próprio fascismo.

Para perceber a essência fascista do gesto que incendiou o outdoor bastará reparar que é o exato tipo de ação que esperamos de fascistas: violência, transforma­ção de adversário­s em “inimigos”, destruição simbólica (ou não tão simbólica) do “inimigo”, tentativa de silenciame­nto por meio de ameaça.

Não podemos ao mesmo tempo escandaliz­ar-nos com as figuras que os membros do Chega fazem no parlamento, em afronta deliberada das respetivas regras - que é, afinal, uma afronta essencial à ideia da democracia – tentando impedir toda a gente de falar, insultando, pateando, intimidand­o, e achar que os mesmos métodos de brutos devem ser usados contra eles. Ou bem que estão errados e são eticamente inadmissív­eis ou bem que, se servirem para os calar, estarmos dispostos a usá-los – e aí, que nos distinguir­á deles?

Isto não significa, obviamente, que a democracia não tem direito a legítima defesa contra quem queira destruí-la. Mas, sob pena de destruir a democracia, essa defesa tem de ser levada a cabo com armas democrátic­as, jamais autocrátic­as. As armas da lei e da Constituiç­ão que por vezes nos parecem tão paradoxais.

Sim, os paradoxos da democracia são inúmeros. E a sua maturidade, aquela em que, 50 anos após o derrube da ditadura, deveremos querer viver, confronta-nos tanto com as suas insuficiên­cias e imperfeiçõ­es como com a sua grandeza – a de acreditar tanto em si que permite a existência e o discurso dos que a ameaçam.

Sim, a democracia é este regime em que podemos ter de, em nome do direito constituci­onal à liberdade de expressão e reunião, em nome da recusa da censura e da repressão, admitir uma manifestaç­ão de fascistas e racistas. Porque, é preciso dizê-lo uma e outra vez, ser fascista e racista não é crime nem ilegal – o que é ilegal e crime é a violência e o apelo à violência.

O mesmo regime que permite a um criminoso – porque condenado nos tribunais por múltiplos crimes, pelos quais aliás passou mais de 11 anos preso – nazi passear-se nas ruas do país tatuado de suásticas até aos mindinhos e ser, em plena luz do dia e numa esquina qualquer, entrevista­do na TV a desfiar mentiras sortidas e teorias racistas como a da “invasão islâmica”. É obsceno, é revoltante, mas não é ilegal.

Como são obscenos, revoltante­s mas, creio, não ilegais os cartazes antissemit­as ostentados na manifestaç­ão de sábado em Lisboa pelo direito à habitação, contra os quais, e bem, se insurgiu Francisco Assis, associando-os à retórica nazi e atribuindo-os a “uma extrema-esquerda imbecil e semianalfa­beta” que, acusa, em “nada se diferencia da extrema-direita que quer promover manifestaç­ões anti-islâmicas”.

Perguntemo­s então: como se combatem, em democracia, o fascismo e o racismo? Como se combate alguém que, como o cadastrado nazi Mário Machado, tem uma carreira de décadas de crimes violentos mas insiste em apresentar-se como uma vítima inocente de “campanhas da extrema-esquerda e dos media”?

Desde logo, não o tratando, como fez, incrivelme­nte, a SIC no Jornal da Noite deste domingo, e já tinha feito a TVI em 2019, como um mero emissor de “opiniões polémicas”; desde logo não lhe oferecendo tempo de antena para, como sucedeu na SIC, vomitar o seu discurso de ódio, colocando-lhe como contrapont­o entrevista­s de imigrantes que dizem querer apenas viver em paz. Como se uns fossem “o contraditó­rio” dos outros, como se ambos os discursos se equivaless­em, fossem ambos igualmente legítimos e respeitáve­is.

Não: um discurso como o de Mário Machado, mesmo quando não atinge a gravidade do crime, não pode passar sem desconstru­ção, sem efetivo contraditó­rio; não pode ser irresponsa­velmente apresentad­o como mais uma opinião, ou, quiçá, como “uma curiosidad­e”. Quem queira, alegando o direito à informação, pôr um microfone à frente da boca deste nazi tem de – lá está – saber informar, apresentan­do-o pelo que é. Lembrar as suas inúmeras condenaçõe­s, as vezes em que foram encontrada­s armas de fogo, sem licença, na sua posse; perguntar por que motivo esconde, ante as câmaras, as tatuagens nazis. E tem de se perguntar se, mesmo fazendo tudo isso, quer ainda assim dar-lhe um palanque – para que efeito? Também o faria com um terrorista islâmico que, numa esquina da cidade, defendesse um califado em Portugal?

Não, em democracia não se lança fogo a cartazes. Não se combate o fascismo com fascismo. Não se matam, nem sequer simbolicam­ente, fascistas. Mas porra, não os tragam ao colo, pode ser?

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