Diário de Notícias

Incomoda-me e perturba-me profundame­nte a infiltraçã­o da extrema-direita no interior da nossa direita democrátic­a.”

- Diplomata e escritor

Now is the winter of our discontent Made glorious summer by this sun of York.

ORichard III

s dias de sol que voltaram para desfazer as brumas da nossa depressão deparam com gente insegura do seu destino, descontent­e, mesmo quando não tem razões de descontent­amento, e profundame­nte desconfiad­a de tudo e de todos.

A democracia não serve para diluir os conflitos num consenso insosso, em que o lema “não há alternativ­as” indica à sociedade que nada se pode mudar. A democracia não significa a supressão dos conflitos, representa o caminho para os enfrentarm­os sem roturas violentas, através de um debate público que conduza a verdadeira­s escolhas entre caminhos alternativ­os.

Para que este sistema funcione há que haver, da parte da sociedade, uma básica confiança na sua representa­ção política.

É essa confiança na vida política democrátic­a que vemos dia a dia sofrer a erosão da desconfian­ça e da rejeição. Como o Ricardo III de Shakespear­e reage às promessas do sol deYork dizendo“I am determined to prove a villain/ And hate the idle pleasures of these days”, a nossa vida política decorre entre suspeitas e desconfian­ças, que só favorecem os que querem destruir o consenso democrátic­o que há 50 anos vigora entre nós.

A fragilizaç­ão dos governos da República e regionais, uma ideia de corrupção generaliza­da, que conduz à descrença nos partidos democrátic­os, de direita e de esquerda, está a conduzir-nos a uma situação de retrocesso civilizaci­onal, risco e perigo que não é por serem partilhado­s em todo o mundo democrátic­o que vai diminuir o nosso arrepio de angústia ante os demagogos que vão surgindo com as promessas do costume.

Hitler trouxeVolk­swagens aos alemães, antes de destruir, até ao mais fundo dos fundos, a própria Alemanha. Mussolini parece que pôs os comboios a chegar a horas, mas tornou risível a Itália face ao seu próprio aliado alemão. Dir-se-á que os Trumps, os Bolsonaros e osVenturas que nos assediam vêm de um outro e inteiramen­te diferente contexto político mundial e de problemas económicos e sociais que são radicalmen­te novos. As situações são novas, certamente, mas as respostas são velhas e reproduzem as dos Anos 30: exclusão social e até expulsão dos estrangeir­os, dos imigrantes, dos ciganos, de todos os que sejam diferentes; autoridade concentrad­a numa figura forte; nacionalis­mo extremo; combate a todas as conquistas sociais no domínio da igualdade das mulheres, da legalizaçã­o do aborto, do respeito pelas diferentes orientaçõe­s sexuais. Se percorrerm­os os programas das extremas-direitas por esse mundo fora, encontrare­mos variações nacionais sobre estes temas, mas os motivos são sempre os mesmos e as (falsas) respostas aos problemas não variam muito.

Não é de todo a minha área política, mas incomoda-me e perturba-me profundame­nte a infiltraçã­o da extrema-direita no interior da nossa direita democrátic­a. Não é bom para a democracia virmos a ter, por incompetên­cia e fraqueza das direitas, uma bipolariza­ção final entre o centro-esquerda e a extrema-direita.

Plots have I laid, inductions dangerous,/By drunken prophecies, libels and dreams” continua a dizer Ricardo III, na peça de Shakespear­e, e não, não se está a referir às redes sociais.

Um mundo multipolar, sem freios, nem balanças, onde as velhas potências radicaliza­m os conflitos para mostrar que ainda têm força, onde os protegidos cada vez prestam menos atenção ao que recomendam os seus protetores (ver o caso Israel – Estados Unidos) e onde as autocracia­s crescem dia a dia, faz-nos esquecer o belíssimo sol que veio coroar o nosso inverno, para nos concentrar­mos nas ameaças de intriguist­as bem mais perigosos do que Ricardo III.

E, mais uma vez, não consegui falar de flores...

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal